Crítica ao capitalismo e desigualdade social: entenda por que Round 6 também é sobre política
Apesar das várias teses, entre elas a de que a produção seria uma alegoria ao regime socialista, a série reflete sobre a desigualdade socioeconômica sul-coreana e os problemas do modelo capitalista
17:27 | Out. 21, 2021
Desde sua entrada na Netflix, o drama distópico de sobrevivência Squid Game [Round 6 no Brasil] não só está prestes a se tornar a série de streaming mais assistida de todos os tempos, como tem gerado uma série de debates políticos sobre suas referências para a vida real. Apesar das várias teses, entre elas a de que a produção seria uma alegoria ao regime socialista, posição defendida pelo deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), a série, ao refletir a desigualdade socioeconômica coreana, critica o fracasso do modelo capitalista na Coreia do Sul.
“Eu queria escrever uma história que fosse uma alegoria ou fábula sobre a sociedade capitalista moderna, algo que retratasse uma competição extrema, algo como a competição extrema da vida. Mas eu queria que ele usasse o tipo de personagem que conhecemos na vida real ”, disse o criador da série, Hwang Dong-hyuk, à Variety.
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Na produção, 456 sul-coreanos (país capitalista) endividados e sem oportunidades aceitam participar de um jogo que tem como prêmio algo em torno de R$ 200 milhões. Porém, a “aventura” reproduzida em jogo é paga com a vida dos personagens, onde os jogadores que falham são mortos no local. Ao morrer, um jogador deixa um dinheiro extra ao prêmio, exibido na forma de um cofrinho gigante que levita no dormitório dos jogadores.
Como expectadores, um grupo de supostos empresários, representantes das elites mundiais, assistem ao “espetáculo” a ponto de apostar entre si quem deve sair vitorioso na disputa. Enquanto isso, os participantes do jogo também travam um embate pelo dinheiro. O protagonista da série, Gi-hun, busca desesperadamente superar sua dívida contraída anos atrás. A história demonstra criativamente como a sociedade capitalista possui uma lógica diferente para ricos e pobres.
Ao aceitarem participar do jogo, Gi-hun e os demais competidores percebem que o modelo em que vivem é um fracasso. Nela, a classe trabalhadora coreana é inserida em um modelo explorador, e que vende a falsa ideia de que o trabalho árduo garantiria alguma prosperidade. Na prática, a situação acaba sendo diferente, pois o próprio sistema capitalista não apenas lucra, como só existe em função do endividamento e da precarização da sociedade. É isso que é mostrado ludicamente em Round 6.
É neste ponto onde a série aborda a forte influência do sentimento de meritocracia na cultura coreana. Apesar do sistema vendar a felicidade em função do trabalho duro, até mesmo o mais rico que segue um árduo processo competitivo sofre com o desemprego, a desigualdade, a precarização dos serviços públicos e a monetização da humanidade e dos laços afetivos.
Um bom exemplo é o alto preço de uma internação em hospitais privados, onde a mãe do protagonista é internada. Viciado em jogos de azar, o protagonista procura uma rota de fuga na esperança de ganhar dinheiro suficiente para pagar as contas médicas de sua mãe, sustentar sua filha e impedir que ela vá para os Estados Unidos.
Outra alegoria é de que quantidade não significa qualidade. Os personagens vivem de forma semelhante aos modelos da sociedade atual, em que a agilidade e o volume de trabalho definem quem fica em seus empregos e, consequentemente, “tem sucesso”.
Na prática, o mesmo modelo traz consigo distúrbios psíquicos causados pela exaustão extrema, sempre relacionada ao trabalho de um indivíduo, como conhecida e debatida síndrome de burnout. Não há pausa nem preocupação com o individual e o humano. Tudo isso revela que Round 6 é uma forte investida para mostrar que o mito capitalista do país possui buracos cada vez mais profundos e problemáticos, diferente do que é propagandeado.
Coreia do Sul e o seu “desenvolvimento”
Após um acelerado processo de industrialização após a Guerra da Coreia, a economia sul-coreana experimentou grandes mudanças nos últimos sessenta anos. Em 1960, antes do governo do ditador Park Chung-hee, a renda per capita da Coreia do Sul registrava US$ 82 e equiparava o país a outras regiões com problemas socioeconômicos, como Gana, Senegal, Zâmbia e Honduras. A situação mudou um ano depois e o “Milagre do Rio Han” transformou o país de baixa renda em uma das principais economias do mundo em poucas décadas.
Porém, o crescimento da economia não necessariamente acompanhou o aumento da qualidade de vida da sociedade. Distante do que se vendia, poucas pessoas tinham um elevado padrão geral de vida e várias outras foram sendo condicionadas à extrema pobreza.
Com uma alta taxa de suicídio, milhões de coreanos lutam para sobreviver. Enquanto isso, as elites do país se esforçam para manter um controle rígido sobre a economia. Para se ter um exemplo, a economia coreana funciona com base em conglomerados empresariais pertencentes a famílias ricas e poderosas que são apoiadas pelo governo, o que é chamado de chaebol.
Esses mesmos grupos, também políticos, ao invés de investir na sociedade e se esforçar para tirar o país da pobreza, acumulam monopólios e escândalos de corrupção sem nenhuma punição. Um exemplo próximo é a Samsung. O CEO do chaebol do país é Lee Jae-yong, o mesmo que foi preso por suborno e peculato, porém, cumpriu apenas metade de sua sentença de 2 anos. Para justificar sua libertação, o governo sul-coreano citou a importância de Lee para a economia do país.