Comitê da ONU sobre desaparecimentos forçados afirma que Lei da Anistia não pode impedir investigações no Brasil

Após avaliação, o Comitê publicou conclusões e recomendações ao país, deixando claro que o Brasil não cumpre o Direito internacional

17:46 | Set. 29, 2021

Por: Alice Araújo
O Pacto Global proposto pela ONU em 2000 é definido como uma iniciativa voluntária que fornece diretrizes para a promoção do crescimento sustentável e da cidadania (foto: Arquivo O POVO)

O Comitê das Organizações das Nações Unidas (ONU) sobre Desaparecimentos Forçados avaliou pela primeira vez, na semana passada, o caso do Brasil. Entre as conclusões, o órgão sugere que a Lei da Anistia não pode ser usada como impedimento para investigação e punição de casos de crimes da ditadura militar. As informações são da coluna de Jamil Chade, para o UOL.

Os membros do Comitê, que participaram da sessão de avaliação do governo Bolsonaro, ficaram chocados com a atitude que chegou a ser interpretada como "arrogante" por parte de membros específicos da delegação brasileira. Em suas recomendações, o órgão chega a reforçar insistentemente que "lamenta" a postura do governo, além de cobrar mudanças profundas.

De acordo com as demais conclusões do Comitê, o Brasil precisa adotar medidas urgentes para cumprir suas obrigações internacionais, inclusive impedindo que investigações sobre desaparecimentos sejam tratadas por tribunais militares. Desta maneira, a análise do grupo sugere que o país viola artigos importantes do tratado sobre desaparecimentos forçados, deixando claro, com a publicação, que o Brasil não cumpre com as regras do direito internacional.

Além dos desaparecimentos no período de ditadura, o órgão também citou casos mais recentes, e reforçou preocupação "com as informações recebidas sobre desaparecimentos forçados alegadamente perpetrados em tempos recentes, principalmente contra pessoas de ascendência africana e pessoas que vivem em favelas ou nas periferias das grandes cidades".

O texto final do Comitê afirma ainda que o governo tentou passar a mensagem de que "não há indicação clara de que desaparecimentos forçados ocorreram “durante a democracia brasileira”, pelo menos em qualquer escala significativa".

Lei de Anistia e crimes de ditadura

Uma das principais preocupações do Comitê diz respeito às denúncias de desaparecimentos forçados “em particular entre 1964 e 1985, e que estão em andamento uma vez que as pessoas desaparecidas não foram localizadas", disse o órgão.

"Com relação aos desaparecimentos forçados alegadamente perpetrados de 1964 a 1985, o Comitê saúda a criação da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão Especial sobre Mortes e Desaparecimentos Políticos e seu importante trabalho. Entretanto, está preocupado com os relatórios relativos à falta de responsabilização por tais desaparecimentos forçados, principalmente devido à aplicação da Lei de Anistia nº 6.683/79, e lamenta não receber informações suficientes sobre os progressos alcançados até o momento na busca e, em caso de morte, identificação das pessoas desaparecidas durante aquele período".

Dentre as recomendações, a organização pediu que o país "adote as medidas necessárias para garantir os direitos à justiça, à verdade e à reparação de todas as vítimas de desaparecimentos forçados, independentemente de quando o desaparecimento tenha começado". Ainda neste tema, o grupo criticou o governo diretamente lamentando “a falta de envolvimento do Estado em relação a esses casos durante o processo de relatório".

Julgamento de desaparecimentos em tribunais militares

Outra recomendação feita pelo Comitê, consistiu no julgamento de casos de desaparecimento forçado serem “tratados somente pelas autoridades civis". Desta maneira, o órgão reforçou que o Brasil deve tomar “rapidamente as medidas necessárias para garantir que a investigação e o processo dos casos de desaparecimento forçado sejam expressamente excluídos da competência dos tribunais militares".

"O Comitê recomenda que o Estado parte estabeleça um mecanismo para assegurar que as forças policiais ou de segurança, sejam civis ou militares, cujos membros são suspeitos de terem cometido um desaparecimento forçado, não possam participar de nenhuma etapa da investigação", sugere o Comitê da ONU.

Críticas ao governo

Em relação às críticas do Comitê feitas ao governo, o órgão mais uma vez “lamentou” a postura da delegação brasileira que, durante a avaliação da ONU, chegou a questionar os dados apresentados pela sociedade civil sobre o assunto.

O grupo ainda apontou as várias violações cometidas pelo Brasil, como "os atrasos regulares nas respostas" das autoridades ao serem questionadas sobre casos específicos, bem como criticou o fato do país não ter reconhecido a competência do órgão para avaliar casos apresentados aos membros por vítimas. "O Comitê lamenta a afirmação da delegação de que não há sinal de que o Estado parte reconhecerá tal competência "num futuro muito próximo".

Outras críticas foram feitas também à falta de dados em casos de desaparecimento. O Comitê da ONU reforçou mais uma vez que “lamenta que o Estado parte não tenha fornecido informações estatísticas desagregadas sobre pessoas desaparecidas". Entre as recomendações, o órgão sugere que o país tome "as medidas necessárias para gerar rapidamente informações estatísticas precisas e atualizadas sobre pessoas desaparecidas, desagregadas por sexo, idade, nacionalidade, local de origem e origem racial ou étnica".

Principais recomendações ao Brasil:

(a) Garanta que todos os casos de desaparecimento forçado sejam investigados prontamente, de forma completa e imparcial, mesmo que não tenha havido uma queixa criminal formal; e que os supostos infratores sejam processados e, se considerados culpados, punidos de acordo com a gravidade de seus atos;

(b) Remover quaisquer impedimentos legais às investigações sobre os desaparecimentos forçados perpetrados durante o regime militar que ainda não cessaram, em particular no que diz respeito à aplicação da Lei de Anistia;

(c) Redobrar seus esforços para combater a discriminação contra certos grupos vulneráveis visados como um meio de evitar seu desaparecimento e assegurar o pleno acesso a seu direito à justiça;

(d) Incentivar e facilitar a documentação e apresentação de queixas pelos atores da sociedade civil, assim como a participação de parentes nas investigações; e assegurar que os parentes sejam regularmente informados sobre o progresso e os resultados das investigações;

(e) Acelerar seus esforços para localizar e, em caso de morte, identificar todas as pessoas sujeitas a desaparecimento forçado cujos destinos ainda não tenham sido esclarecidos;

A este respeito, o Comitê encoraja o Estado parte a assegurar que os esforços que empreende na busca de pessoas desaparecidas, incluindo a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, estejam alinhados com seus princípios orientadores para a busca de pessoas desaparecidas;

(f) Assegurar a coordenação e cooperação efetiva entre todos os órgãos envolvidos nas investigações e buscas; que eles tenham os recursos financeiros, técnicos e humanos necessários para desempenhar suas funções de forma rápida e eficaz; e que tenham efetivo e oportuno para qualquer lugar de detenção ou qualquer outro lugar onde haja motivos razoáveis para acreditar que a pessoa desaparecida possa estar na posse de agências do Estado, incluindo as forças armadas;

(g) Garantir que todas as vítimas recebam uma reparação adequada que seja sensível às suas necessidades específicas.