Entenda o que muda e por que as eleições deste ano podem ser as mais difíceis para vereadores
Pleito deste ano apresenta várias mudanças em função do coronavírus, mas também traz novas regras eleitorais que devem dificultar a vida dos candidatos
08:00 | Set. 27, 2020
Você já se perguntou por que certo candidato a vereador ou deputado tirou mais votos que outros e não foi eleito? Ou mesmo por que um candidato de um partido que você sequer conhece foi eleito graças ao seu voto? Quando o deputado federal Tiririca (PL) foi eleito em 2010 com mais de 1,3 milhão de votos, o mais votado de São Paulo, levou consigo outros três deputados, um deles com apenas 90 mil votos.
A explicação para este fenômeno envolve as coligações partidárias para cargos proporcionais, que estão proibidas a partir destas eleições de 2020. Combinada com a cláusula de barreira e mudança no combate às candidaturas fictícias, estas três mudanças são a maior alteração no ordenamento jurídico das eleições brasileiras nos últimos anos.
Os maiores afetados são os candidatos ao Legislativo, ou seja, os postulantes às câmaras municipais no pleito deste ano. Agora, os partidos vão precisar caminhar por suas próprias pernas para chegar à reta final e sem a garantia de que os nomes mais conhecidos vão ajudar a eleger desconhecidos.
Para o eleitorado, as alterações nas regras do jogo devem deixar mais nítido como seu voto contribuiu no resultado das eleições.
Os eleitores devem submeter-se a uma série de protocolos sanitários nos locais de votação para evitar a disseminação da Covid-19, o que implica, por consequência, em um treinamento diferenciado para mesários e fiscais. As urnas, por sua vez, ficarão abertas por mais tempo.
As singularidades destas eleições, no entanto, começaram pelo calendário. A data de realização do certame foi adiada em função da crise sanitária enfrentada no País e no mundo. Inicialmente prevista para 4 de outubro, foi postergada para 15 de novembro. No caso dos municípios com segundo turno na disputa pela prefeitura - aqueles com mais de 200 mil eleitores -, o resultado final fica para 29 de novembro. É a primeira vez desde as eleições de 1996 que os brasileiros votam em novembro.
Juntas, essas novidades e o contexto sanitário em meio à pandemia do novo coronavírus, que já vitimou mais de 140 mil brasileiros, desvelam a singularidade das eleições de 2020, a serem realizadas em 5.570 municípios brasileiros para eleger 67,8 mil representantes, entre prefeitos, vice-prefeitos e vereadores. Entenda a seguir:
Qual a diferença da eleição de prefeitos para vereadores?
A eleição para prefeito, que é o chefe do Poder Executivo municipal, segue o mesmo princípio da eleição para governador e presidente - ganha o mais votado. A isso chamamos de eleição majoritária. Nos municípios com mais de 200 mil eleitores, pode ser necessária a realização de um segundo turno, na qual o vencedor é o candidato que obtiver maioria simples (50% dos votos mais um)
Já na eleição de vereadores o princípio é de uma eleição proporcional. Primeiro, são somados os votos que todos os candidatos do partido ganharam. Essa soma vai garantir um número de vagas para o partido. Ou seja, a quantidade de vagas para a legenda é proporcional à quantidade de votos que ela receber.
Dentro desse partido é formada uma fila interna por ordem de votação para ocupar essas vagas conquistadas. Os mais votados dentro da sigla vão preenchendo as vagas do Legislativo. A essa fila interna chamamos lista aberta. Isso porque o partido não decide quem fica com a vaga, mas sim o eleitor por meio do voto.
Na urna, é possível votar em um candidato ou em um partido. Para votar em um candidato a vereador, é preciso digitar cinco números. Exemplo: o candidato A tem como número o 75123. Os dois primeiros números representam o número do partido, 75. Os três últimos números representam o número específico do candidato.
Quando o eleitor vai votar para vereador e só preenche os dois primeiros dígitos, ele está votando na legenda de modo geral. Isso significa que seu voto não interfere nessa fila interna dos partidos. Porém, quando ele preenche os cinco dígitos, está escolhendo um nome em específico para avançar na fila, na ordem de preferência para ser eleito.
Como é feito o cálculo de quem é eleito e quantas vagas um partido tem direito?
O quociente eleitoral estabelece uma média de quantos votos são necessários para eleger um vereador ou deputado. É um número que precisa ser alcançado por partidos para ter direito a um assento na Câmara Municipal. O cálculo é feito ao dividir a quantidade de votos válidos apurados pela número de vagas. Os votos nulos e brancos não entram na conta.
Exemplo: uma cidade tem 20 cadeiras de vereador e possui 40 mil eleitores. Desse total, apenas 30 mil votaram em algum partido ou candidato. Logo, serão 30 mil votos divididos por 20 vagas. Portanto, para ganhar um assento na Câmara municipal, é preciso obter pelo menos 1.500 votos, pois este é o quociente eleitoral.
Para obter o quociente partidário é preciso dividir o total de votos depositados no partido e seus candidatos pelo quociente eleitoral. Se Partido A conseguiu 4 mil votos nessa cidade do exemplo anterior cujo quociente eleitoral ficou em 1.500, ele pode eleger dois vereadores. Esse número de cadeiras que um partido tem direito pelo número de votos que recebeu é o quociente partidário.
O problema é que muitos partidos pequenos têm desempenho inexpressivo e apenas um ou outro candidato é bem votado, o que pode não ser suficiente para alcançar o quociente partidário. Por isso, eles costumavam formar alianças com outros partidos: as coligações.
O fim das coligações partidárias
As coligações são alianças entre partidos, que se unem para atingir determinados objetivos eleitorais. A partir de 2020, essas uniões partidárias para cargos proporcionais, como o de vereador, estão proibidas. “O que se queria evitar era que se formassem coligações com partidos inexpressivos que continuassem tendo alguma expressividade somente pelas coligações. Para que tenhamos partidos mais fortes e menos partidos”, explica a professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará (UFC), Raquel Ramos Machado.
Embora estas coligações estejam proibidas para vereadores, elas são permitidas na eleição para prefeito, que segue a lógica majoritária simples, ou seja, ganha o mais votado, sem cálculos proporcionais.
Em parte, era por causa desse formato de aliança que o seu voto em um candidato a vereador, às vezes, podia acabar elegendo outro. Isso porque na hora da apuração os votos de todos os candidatos a vereador de cada integrante dessa aliança eram somados, assim como os votos depositados somente no partido, sem candidato específico. Essa soma total dizia quantas vagas a aliança tinha direito e estas vagas eram distribuídas entre os mais votados da coligação inteira.
Voltando ao exemplo anterior da cidade em que o quociente eleitoral deu 1.500, vamos supor que os partidos B, C e D se uniram para concorrer. O partido B conseguiu 2 mil votos. O C e D, mil cada um. Ao final, a aliança obteve 4 mil votos, logo, pelo quociente partidário, tem direito a duas vagas. Mas, sozinhos, C e D não teriam conseguido alcançar o quociente eleitoral.
Se candidato mais votado do partido B teve 1.700 votos, foi eleito. Já o candidato mais votado do partido C teve apenas 800 votos. Sozinho, não seria eleito. Mas, como a aliança teve voto o suficiente para duas vagas, ele acaba eleito. Não por seus próprios votos, mas pelos votos que a união dos partidos conseguiu.
Assim, quem votou no vereador de 1.700 votos, indiretamente elegeu o de 800 porque eles concorreram em uma mesma chapa. Com o fim das coligações deste ano, isso não vai mais ser possível. Cada partido vai ter que atingir o quociente partidário por conta própria. O eleitor não acabará ajudando candidatos de outro partido.
Com o fim das coligações, se um candidato for muito bem votado e levar o partido a conseguir várias cadeiras, aqueles menos votados ainda podem ser beneficiados e acabarem sendo puxados, mas somente se forem do mesmo partido. Não obstante, para se beneficiar, o candidato menos votado agora vai ter que cumprir requisitos mínimos.
O que acontece com os “puxadores de voto”?
Para atingir o quociente partidário, muitos partidos procuravam nomes conhecidos que inundassem a coligação de votos e garantissem a eleição de outros candidatos, chamados de "puxadores de voto". É o caso do deputado federal Tiririca que, tanto em 2010 quanto em 2014, levou consigo outros deputados menos votados. Agora, uma nova cláusula de barreira em vigor já nestas eleições de 2020 visa impedir isso.
“Antes você podia ter um candidato com votação muito expressiva, isso aumentava o quociente partidário e dava mais cadeiras para aquele partido. Aí não importava quantos votos os outros tivessem tirado”, explica Orleanes Cavalcanti, secretária judiciária do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE). “É para impedir mesmo o puxador de votos. Você tinha um candidato com milhões de votos, um apenas, apenas um, e ele trazia consigo candidatos com 300 votos, 400 votos. Não representava o eleitorado”, exemplifica.
Suponha que o partido Z lance três candidatos e consiga 3.000 votos. Os candidatos receberam esta quantidade de votos: 1º lugar, 2.800 votos; 2º lugar, 160 votos; 3º lugar, 40 votos. No caso da cidade fictícia em que o quociente eleitoral ficou em 1.500 votos, esse partido tem direito a duas cadeiras e o 1º lugar foi eleito.
Até 2016, a fila simplesmente seguia a ordem de mais votados até preencher as vagas. Em 2020, para ter direito a uma vaga, qualquer candidato precisa atingir pelo menos 10% do quociente eleitoral. No caso de 1.500, são 150 votos. Portanto, o 2º lugar também foi eleito. No entanto, se o 2º e o 3º tivessem outro resultado, como, por exemplo, 140 e 60 votos respectivamente, nenhum dos dois teria direito à segunda vaga.
“É uma barreira imposta pela lei para que um candidato que não represente o eleitorado ou represente minimamente alcance uma cadeira no Parlamento, seja municipal, estadual ou federal”, conclui Orleanes.
Mudança no combate às candidaturas fictícias
Outra mudança de peso nas regras para as eleições municipais de 2020 é um padrão preventivo para lidar com candidaturas falsas do gênero feminino. A partir de agora, se for comprovada fraude, o partido e todos os seus candidatos podem ser impedidos de concorrer.
A legislação brasileira exige uma cota de gênero na lista de candidatos inscritos pela sigla para concorrer às eleições. É preciso haver, no mínimo, 70% de um gênero e 30% de outro. Como a presença masculina é dominante nos cargos públicos brasileiros, em geral, os 30% de cota costumam se referir às mulheres. Quando as candidaturas são apresentadas e o equilíbrio 70-30 é atingido, o partido tem passe-livre para concorrer.
Para driblar a ausência de concorrentes mulheres, muitos partidos recorrem ao uso de falsas candidatas, pessoas que têm dados parcialmente utilizados e, por vezes, sequer sabem que estavam concorrendo. São casos identificados quando há pouca documentação, fotos em desconformidade, muitas vezes retiradas da internet, entre outros indícios.
Antes, se houvesse algum problema de candidata falsa, o registro da candidatura era indeferido. Agora, se o problema for detectado, o juiz vai optar pelo não reconhecimento. O indeferimento não altera o cálculo de participação de gênero, é como se o partido houvesse cumprido sua obrigação de 70-30 e depois tivesse encontrado um erro a ser ajustado. Se a fraude fosse constatada, qualquer punição só ocorreria após a eleição, com candidatos já eleitos.
Já o não reconhecimento aponta que o partido sequer cumpriu a obrigação de 70-30, logo não tem direito de concorrer. A punição ocorre antes da eleição. A mudança no combate à fraude já tem efeitos percebidos no Ceará. “Já tivemos partidos aqui no interior que não vão nem apresentar candidatura porque não preencheram a cota feminina de 30%, quer dizer, não vão nem concorrer nas eleições”, revela Orleanes Cavalcanti, secretária judiciária do TRE.
Para contornar a regra, algumas siglas têm limitado o número de candidaturas. “[Alguns] Partidos vão apresentar apenas um candidato porque não têm candidata do gênero feminino. A jurisprudência do TSE diz que quando o partido tem apenas uma candidatura proporcional ele fica desobrigado de apresentar uma outra candidata”, esclarece.
No caso em que mulheres são cúmplices na fraude, isto é, se inscrevem em conluio com o partido, mas sem intenção de concorrer, só é possível detectar após o pleito, quando são analisados indícios como votação inexpressiva, ausência de campanha e de prestação de contas, destinação dos recursos do fundo partidários a outros candidatos. Se comprovada a fraude, todos os nomes do partido são cassados.
Quais os efeitos destas mudanças?
Muitos especialistas apontam que com a cláusula de barreira e o fim das coligações, os partidos podem tentar lançar ainda mais candidatos e procurar outsiders, nomes famosos sem experiência política. Outro efeito possível é que mais partidos devem lançar mais candidatos à prefeitura, não exatamente candidaturas competitivas, com chances reais de vitória, mas com espaço o suficiente para tornar o partido e seus nomes conhecidos.
“Os candidatos a prefeito de determinados partidos políticos terão mais destaque e esse destaque terá repercussão nos candidatos a vereadores. Quanto mais se destacar o candidato a prefeito, provavelmente mais destaque terão os vereadores da mesma legenda”, analisa Raquel Ramos, professora de Direito Eleitoral.
Com a cláusula de barreira a dificultar a possibilidade dos “puxadores de votos” levarem consigo mais nomes do mesmo partido, a aposta é que neste ano o número de candidaturas cresça ainda mais, de modo a ter mais nomes capazes de atrair votos que levem o partido atingir a votação necessária para garantir um assento na Câmara municipal.
Com as novas regras, os partidos poderão lançar um número limitado de candidatos a vereador, correspondente a no máximo 150% da quantidade de vagas disponíveis. Em Fortaleza, por exemplo, onde há 43 vagas para vereador na disputa, um partido só pode lançar 65 candidatos. Esse é um dos pontos que, segundo Orleanes Cavalcanti, vai impedir uma explosão de candidaturas nas eleições municipais deste ano.
“Eu acredito que não vai haver essa explosão. Os partidos estão com dificuldades de preencher as cotas femininas e outra questão que impede essa explosão é o fundo destinado à campanha. Por que? Porque fazer campanha não é só apresentar candidatos, você tem dar recursos para que haja uma candidatura viável. Não existe, é uma ilusão, fazer uma candidatura sem recursos. Uma candidatura requer recursos, e a cada eleição esses recursos têm sido mitigados, reduzidos”, explica a secretária judiciária do TRE.
O que muda para o eleitor na hora de votar
No Ceará, quase 8.900 pessoas morreram por conta do novo coronavírus, segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde. Para realizar as eleições municipais em segurança, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) adotou uma série de recomendações redigidas em parceria com instituições como os hospitais Albert Einstein e Sírio-Líbanês, além da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Neste ano, apesar do esforço hercúleo para realizar a biometria dos eleitores de Fortaleza e dos outros municípios do Ceará, a identificação biométrica não será utilizada por causa do vírus. Na seção eleitoral, o eleitor deve apresentar a documentação com foto, como é tradicional. Quem realizou a biometria, pode apresentar o E-Título, disponível no app de mesmo nome.
“Isso seria um risco porque primeiro aumentaria o tempo de eleição e, principalmente, aquelas pessoas de grupo de risco, que geralmente já tem uma dificuldade na coleta da impressão digital, eles passariam mais tempo na seção eleitoral. A identificação será feita de forma convencional”, explica Edna Saboia, coordenadora de eleições e logística do TRE.
Como não vai ser possível registrar a digital, o eleitor precisará assinar o livro de votação. Para isso, é recomendado que cada eleitor leve sua própria caneta. Ainda assim, canetas higienizadas serão disponibilizadas pela Justiça Eleitoral para quem não tiver uma.
Todo eleitor que comparecer à seção eleitoral e enquanto ali permanecer, tem que usar a máscara. Antes de entrar na seção, deve passar álcool em gel, disponibilizado também no local de votação. Ao sair da cabine, tem que passar álcool novamente.
Outra novidade se refere à urna eletrônica, que pela primeira vez vai ter o recurso sintetizador de voz para eleitores com deficiência visual. Antes, eles escutavam apenas o números do candidato. Agora, a urna vai informar o nome também.
O horário da votação será estendido em uma hora. Neste ano, vai começar mais cedo, às 7 horas, e encerra às 17 horas. O TSE definiu um horário específico reservado para pessoas acima de 60 anos e do grupo de risco, de 7h às 10 horas da manhã. Os acompanhantes poderão entrar e também votar neste horário específico.
Serão mais de 75 mil mesários voluntários da Justiça Eleitoral divididos em quase 7 mil locais de votação por todo o Ceará. Eles devem receber um treinamento diferenciado via EaD, máscaras e álcool em gel.
Mesmo com todas as preocupações, Edna Saboia acredita que, neste ano, menos eleitores devem comparecer às urnas. "20% do eleitorado nacional é de eleitores acima de 60 anos, um quinto do eleitorado. Em situação de uma pandemia, é possível que uma parcela dos eleitores não compareçam. Então imagino que essa abstenção vá crescer”, finaliza.