Juiz suspeito, decisão imprestável
19:08 | Jun. 10, 2019
A divulgação das mensagens trocadas entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol quando o ex-juiz de Curitiba ainda estava à frente da Lava Jato gerou reações antagônicas, bastante fieis ao cenário de polarização política observado no Brasil. Em um pólo extremo, estão o próprio Moro, acompanhado por Eduardo Bolsonaro, outras vozes governistas e um inconstante FHC, que não viram no episódio nenhuma anormalidade. “Muito barulho por nada”, declarou o ministro da Justiça, na tentativa de apequenar o furo de reportagem do portal Intercept. Do outro lado, reúne-se um espectro bastante diversificado de críticos dos excessos da Lava Jato: os ministros do STF Marco Aurélio de Mello e Gilmar Mendes, parlamentares da oposição, os advogados de defesa de Lula e de outros réus da operação, para citar alguns.
O teor das mensagens divulgadas tornou mais explícito o que parecia apenas uma conjectura: acusação e juiz se empenharam em uma colaboração interessada. Se o teor das informações se tornar inequívoco, as perguntas a responder neste momento serão: a interferência do julgador no trabalho da acusação ou mesmo o direcionamento ideológico de procuradores do MPF são suficientes para contaminar com a nulidade as decisões que condenaram Lula e tantos outros réus conexos? Os resultados da maior operação anticorrupção do Brasil estão ameaçados?
Uma tese de “salvamento” ganhou força, bem representada pelo artigo de opinião do colunista Celso Rocha de Barros. No artigo “As conversas da Lava Jato”, publicado na Folha de São Paulo nesta segunda, Barros sustenta que, apesar da gravidade dos fatos apurados pelo Intercept e da clara interferência de Moro, ninguém foi inocentado, as práticas de corrupção dos réus continuam demonstradas nos processos: nada muda, portanto, na culpabilidade de Lula no caso do tríplex de Guarujá. Num excesso de generosidade, o colunista chegou a afirmar que a Lava Jato não foi desmoralizada, indicando que os desvios de conduta de juízes e procuradores não teve o poder de ameaçar o êxito da operação.
Situada no centro da polarização, a tese de que ‘Moro errou, mas as condenações sobrevivem ao seu erro’ ganhou força nas redes, mas não merece prosperar. Se as provas publicadas pelo Intercept forem confirmadas, se estará diante do maior golpe jurídico – e não só político – à honorabilidade e mesmo à legitimidade da operação.
E isso se deve a um aspecto importante: em um processo judicial, forma e conteúdo são indissociáveis, de modo que invalidades graves na regularidade do procedimento acabam por contaminar o juízo de mérito que venha a ser proferido. É o que se dá com a suspeição. Mesmo na hipótese remota de um processo estruturado em provas válidas (o que não parece ser o caso), um juiz suspeito não tem condições de apreciar a narrativa dos fatos e as provas que venham a ser produzidas. Em razão da inclinação para determinado resultado, a falta de isenção do julgador impossibilita que a “verdade” seja alcançada com objetividade: o julgamento de mérito é imprestável pelo vício, a nulidade desponta.
Aqui trago outro questionamento: o próprio conceito de verdade que é mobilizado em um processo. Pensado como uma dinâmica entre sujeitos que ocupam posições antagônicas, em disputa, o processo tem uma natureza claramente narrativa, discursiva. Por isso, diz-se que ele se organiza dialeticamente em “contraditório”. De acordo com esse raciocínio, não se pode dizer que há fatos cujo sentido seja evidente por si, todos os fatos – e as provas que os demonstram – são objeto de uma disputa narrativa, são as partes que, através dos debates e argumentos, dão aos fatos um determinado peso à luz das normas do Direito.
Isso não quer dizer que qualquer verdade é possível, ou que o processo padece de um relativismo absoluto, mas que as ações humanas e os desvios a serem julgados por um juiz criminal precisam ser interpretados e valorados à luz do que é apresentado nos autos como informação.
Por isso, a magnitude da suspeição de Moro é tão grave. De acordo com as conversas, cujo teor o atual Ministro da Justiça não negou, ele direcionou a produção da prova, indicando fontes consideradas por ele “confiáveis”, antecipou o teor de decisões que iria proferir, criticou determinadas decisões do Ministério Público sobre a estratégia recursal, para citar algumas das temeridades que sobressaem das conversas vazadas. Moro foi, assim, o co-autor de uma das narrativas que buscava assentar a verdade do processo que condenou Lula: o juiz deveria, por imposição legal, permanecer imparcial e distante para “ler os fatos e as provas”, mas estava, desde o início, interessado em determinado resultado almejado pela acusação. Ele recusou o sistema acusatório em vigor no Brasil e deu à sua função uma inquisitoriedade que descompensou a simetria necessária a uma relação processual regular.
Por mais que um desejo coletivo de salvar a moralidade da Lava Jato aqueça muitos corações ressentidos com o lulismo, é preciso atentar para um fenômeno odioso, cada vez mais corriqueiro no Brasil: a banalização da ilegalidade. Uma condenação viciada, qualquer que seja o ódio que mobilize multidões contra um réu, não deve nunca prosperar em um estado que ainda pretenda ostentar a aparência de democracia. A suspeição, mesmo dos mais ilibados heróis, sempre cobra seu preço.