Cultura da memória na Alemanha, 80 anos depois de Auschwitz

Autor DW Tipo Notícia

País cuida para que capítulo mais sombrio da sua história não caia no esquecimento. Mas, diante do crescente antissemitismo, muitos criticam que essa cultura alemã da memória se fixa demais no passado.Na Alemanha, as mesmas cenas se repetem todos os anos em torno do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. Foi em 27 de janeiro de 1945 que o campo de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau foi libertado por tropas soviéticas, e a lembrança desse acontecimento é um elemento central do que no país se chama de cultura da memória. Assim, no Bundestag, as bandeiras mais uma vez estarão a meio mastro, haverá coroas de flores em frente ao púlpito, serão feitos discursos, e muitos parlamentares e convidados trajarão preto. Há mais de 300 memoriais e centros de documentação sobre o nazismo no país. Os anos de 1933 a 1945, sob Adolf Hitler e seu Partido Nacional-Socialista Alemão dos Trabalhadores (NSDAP), fazem parte do currículo escolar. As escolas fazem excursões aos memoriais dos antigos campos de concentração, as crianças são informadas sobre as atrocidades cometidas nesses locais. Muitas empresas alemãs expuseram, ao longo dos anos, seu envolvimento nos crimes nazistas. Até hoje, guardas e colaboradores dos centros de extermínio são julgados. Tudo isso para que o capítulo mais sombrio da história alemã não seja esquecido: a Alemanha nazista desencadeou a Segunda Guerra Mundial, com seus milhões de mortes, e foi responsável pelo assassinato sistemático de 6 milhões de judeus europeus e de centenas de milhares de outros "elementos indesejados": os sinti e roma, opositores políticos dos nazistas, homossexuais e pessoas com deficiência. Contra o esquecimento Mas o que é a cultura alemã da memória? A jornalista e cientista política Saba-Nur Cheema propõe: "A cultura da memória é um conhecimento coletivo sobre o passado e a lembrança dele. No caso da Alemanha, ela está muito centrada na lembrança do Holocausto e em como lidar com o período nazista." Nos últimos anos, ela passou a abarcar cada vez mais também a ditadura comunista da Alemanha Oriental e o período do colonialismo na África. Os mais jovens podem pensar que sempre foi assim. Mas não: o Dia em Memória das Vítimas do Nacional-Socialismo é lembrado na Alemanha desde 1996, sem ter nunca se tornado feriado público oficial. Em 2005, a Assembleia-Geral da ONU declarou a mesma data Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. Fritz Bauer, procurador-geral do estado de Hessen que, contra grande resistência, levou os crimes de Auschwitz a julgamento em Frankfurt, teria dito na década de 1960 que, "quando saio do meu escritório, o território inimigo começa". Judeu, o próprio Bauer, só sobreviveu a era nazista fugindo para a Suécia. Ameaça da extrema direita E até hoje a lembrança dos crimes cometidos pelos nazistas é alvo de hostilidades na Alemanha, em especial por parte da extrema direita e do populismo de direita. O diretor do Memorial de Buchenwald e Mittelbau-Dora, Jens Christian Wagner, se posicionou claramente contra o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), cujos diretórios nos estados da Turíngia, Saxônia e Saxônia-Anhalt são considerados de extrema direita pelo serviço secreto doméstico. Desde então, tem sofrido ameaças, como relatou em redes sociais. "Quase todos os memoriais são confrontados com vandalismo e negação do Holocausto. Mas o que se pode ver também é que o debate na sociedade está se intensificando", diz Veronika Hager, da Fundação Memória, Responsabilidade e Futuro (EVZ, na sigla em alemão). "Declarações que, há dez anos, a sociedade como um todo teria rejeitado como extremas, têm hoje muito mais apoio." Recentemente, a líder da AfD Alice Weidel declarou que "não há dúvida" de que Adolf Hitler era um socialista antissemita e que o antissemitismo está principalmente na esquerda. A declaração vai na mesma linha que afirmações anteriores de membros do partido, que já minimizaram a era nazista como um mero "cocô de passarinho" na história alemã, ou tacharam o Memorial do Holocausto de Berlim de "monumento da vergonha". "O objetivo é minimizar [os crimes nazistas] para que se acabe não falando mais do que aconteceu. Com o perigo de que a ameaça representada pelos grupos nacionalistas de direita não seja mais tangível e concreta", analisa Cheema. Críticas à cultura da memória O jornalista Michel Friedman há anos vem chamando a atenção para o crescente antissemitismo na Alemanha. Ele critica duramente a cultura alemã da memória: "Se tivéssemos feito nossa lição de casa, esse ódio descarado e brutal contra os judeus não seria desenfreado", disse numa entrevista à revista Der Spiegel. Em sua opinião, que é frequente entre organizações e associações judaicas, a cultura alemã da memória é demasiado ritualizada e voltada para o passado: "Porque, por mais importante que seja falar dos judeus que foram mortos, nossa responsabilidade deve recair sobre os judeus vivos. E a vida na Alemanha não é boa para eles." Mesmo antes do 7 de outubro de 2023, dia do brutal atentado terrorista do Hamas contra Israel, o número de ataques antissemitas na Alemanha já era elevado, e desde então, só cresceu. Para muitos, essa é a prova de que a cultura da memória fracassou. Na Alemanha, a cultura da memória anda lado a lado com a proteção da vida judaica: as lições do passado instigam a responsabilidade no presente. Embora essa ligação seja correta, ela exige da cultura da memória algo que dificilmente pode oferecer, diz o especialista Joseph Wilson, da Fundação EVZ. "Uma cultura de memória não é o mesmo que prevenção do e combate ao antissemitismo." A empatia que alguém pode sentir ao visitar um memorial não se replica automaticamente no presente, e não resulta na identificação doe códigos antissemitas e teorias de conspiração. "Temos que entender que os nossos conceitos de prevenção do antissemitismo em parte falharam", frisa Wilson. Depois do 7 de Outubro A cultura da memória na Alemanha já passou por numerosos debates. Historiadores, por exemplo, discutiram a singularidade dos crimes nazistas. O 7 de Outubro e a subsequente guerra em Gaza, com dezenas de milhares de mortes, certamente representam outro ponto de inflexão nesse debate, revelando novas cisões na sociedade. Por exemplo, no significado e uso da popular expressão "Nunca mais é agora". Ela significa que os horrores do nazismo jamais deverão se repetir, e muitos a interpretam como uma expressão de solidariedade para com Israel e os judeus. Mas esse slogan também é usado em manifestações de solidariedade para com os palestinos. Desde o famoso discurso da ex-chanceler federal Angela Merkel no Knesset (parlamento israelense) em 2008, no qual declarou que a segurança de Israel é parte da razão de Estado da Alemanha, a responsabilidade pela existência do Estado judeu costuma ser incluída na cultura alemã da memória. Para alguns, isso é um sinal de que ela não é inclusiva e não foi feita para uma nação moderna de imigração. "Eu não diria 'ela não foi feita para isso', pois a sociedade civil molda a cultura da memória", diz Cheema. O apoio da Alemanha a Israel na guerra em Gaza, justificado com a própria história alemã, gerou críticas entre muitos jovens migrantes e o questionamento "por que os palestinos estão sofrendo assim agora?". Para Cheema, uma pergunta justificada. A cinntista política interpreta o slogan "Free Palestine from German guilt" (Libertar a Palestina da culpa alemã), que foi entoado em manifestações, especialmente em Berlim, como uma mensagem política e não um ataque à cultura da memória. Já o Centro de Pesquisas e Informações sobre Antissemitismo (Rias), que monitora o antissemitismo na sociedade alemã, vê o slogan como um desejo de dar um ponto final no debate sobre o passado nazista. Autor: Lisa Hänel

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