Drones russos perseguem e atacam civis na Ucrânia
Há meses que operadores de drones russos aterrorizaram civis vivendo em regiões de combate no sul na Ucrânia. Alguns desses ataques podem ser considerados crimes de guerra.
00:02 | Ago. 28, 2024
Por Esther Felden, Nina Werkhäuser, Julett Pineda e Igor Burdyga
Os drones russos que sobrevoaram a casa do casal Lyubov e Volodymyr Kindrat em fevereiro de 2024 chegaram para causar destruição. Eles ficaram "zumbindo o dia todo", lembra Volodymyr, de 59 anos. Quando caíram, destruíram a porta de metal da garagem e deformaram o carro. Após esse choque, o casal Kindrat e sua filha deixaram Berislav, sua cidade natal no sul da Ucrânia.
Desde pelo menos o outono europeu de 2023, drones russos têm devastado Berislav, uma pequena cidade perto de Kherson, às margens do rio Dnipro. A DW analisou mais de cem ataques, a maioria deles relatada por autoridades ucranianas no Telegram. Entre setembro do ano passado e julho de 2024, mais de 120 ataques deixaram cerca de 130 civis feridos e 16 mortos em Berislav e nos vilarejos vizinhos.
A equipe da DW realizou dezenas de entrevistas com autoridades ucranianas, analistas de guerra, especialistas em drones, ONGs no local e sobreviventes de ataques de drones. Todas levam a uma conclusão: os militares russos podem ter usado drones de forma indiscriminada e sistemática contra civis.
Duas ONGs apoiaram a DW no processamento e na análise de dados para essa investigação: o projeto Eyes on Russia, do Centre for Information Resilience, e o Arquivo Ucraniano da organização humanitária Mnemonic. Ambas se dedicam a expor, documentar e arquivar violações de direitos humanos e crimes de guerra.
Berislav sob ataque
A região de Kherson havia caído nas mãos dos militares russos em março de 2022, mas foi retomada pelos ucranianos no segundo semestre do mesmo ano. Os russos se retiraram para a margem oposta do rio Dnipro, uma área sob ocupação desde os primeiros dias da invasão.
Os drones que aterrorizaram a população de Berislav a partir de setembro de 2023 são os chamados drones de visão em primeira pessoa, conhecidos pela sigla FPV. Esses pequenos quadricópteros se tornaram fundamentais nessa guerra, sendo mais usados que os drones militares e por ambos os lados.
Quando equipados com explosivos, os drones FPV podem lançar pequenas bombas em pleno voo ou simplesmente cair e, assim, detonar alvos ao mesmo tempo em que suas câmeras fornecem imagens do ataque aos seus operadores. Esses drones são armas altamente precisas, observa o advogado britânico Wayne Jordash, e o espaço para acidentes e danos acidentais é limitado.
Jordash, que tem o título honorário de conselheiro do rei, é presidente da Global Rights Compliance, uma consultoria sem fins lucrativos especializada em direito humanitário internacional. Ele assessora promotores na Ucrânia desde o início da guerra.
Os drones FPV não desempenhavam um papel importante em conflitos internacionais antes da invasão da Ucrânia pela Rússia. No entanto, isso não deve ser um impedimento legal para um processo em tribunais internacionais, diz Jordash.
O direito humanitário internacional determina que as forças militares devem diferenciar entre alvos militares e alvos civis antes de iniciarem um ataque. Além disso, elas são obrigadas a reduzir ao mínimo as baixas civis. De acordo com Jordash, violações graves desses princípios, como alvejar intencionalmente civis, "serão classificadas como crimes de guerra, e os drones não são exceção a isso".
"Jogo de computador" com alvos humanos
"Os drones FPV nunca desaparecem, eles sobrevoam constantemente a cidade", diz o vice-chefe da polícia do distrito de Berislav, Valery Belyy. Ele expressa uma terrível suspeita: "Eles estão praticando em Berislav, estão treinando com civis". O policial relata que colegas já foram atacados várias vezes quando tentaram ajudar as vítimas de ataques de drones. Também Lyubov Kindrat diz que as tropas russas pareciam estar jogando um jogo de computador com "alvos vivos".
O funcionário da organização humanitária World Central Kitchen Yevhen também foi alvo de um drone russo. Ele não quer tornar seu sobrenome público. Foi em janeiro, quando ele estava entregando alimentos em Berislav. No caminho de volta da cidade, o carro dele foi perseguido por um drone. "Não sei por quanto tempo o drone me perseguiu. Eu fiquei muito assustado."
Outro ataque teve um desfecho fatal: dois funcionários franceses da organização humanitária suíça HEKS morreram num ataque com drones em Berislav em 1º de fevereiro, e outros quatro ficaram feridos. Eles foram "perseguidos por drones", disse um dos sobreviventes.
De acordo com a organização, um de seus dois carros, que estavam claramente marcados como um comboio de ajuda, foi atacado por um drone. Quando os ocupantes do segundo veículo correram para ajudar seus colegas de equipe, foram atacados por outros drones. Outras testemunhas também relataram à DW sobre ataques duplos em que um segundo ataque tem como alvo os primeiros socorristas.
Hoje, Berislav parece uma cidade fantasma. Mais de 90% dos 11 mil habitantes de antes da guerra fugiram, e idosos e deficientes são a maioria dos que permaneceram. Algumas das vítimas civis tinham mais de 60 anos.
Sobre quem recaem as suspeitas
A DW conseguiu localizar a posição geográfica e verificar de forma independente sete ataques de drones que resultaram em danos a civis em Berislav. De acordo com especialistas, os drones FPV podem voar até 15 km antes de ficarem sem bateria ou perderem o sinal.
Levando em consideração o alcance médio e a trajetória do voo e considerando que eles geralmente retornam ao operador depois de soltarem a carga, a DW conseguiu restringir a origem provável dos ataques a uma área na margem oposta do rio, controlada pela Rússia. Não é possível atribuir a uma única unidade russa todos os ataques de drones em Berislav, pois elas estão em constante movimento.
No entanto, a DW identificou três unidades que estão na área desde o início de 2023 ou até mesmo o final de 2022. Uma delas é a 10ª Brigada de Propósito Especial, uma unidade altamente secreta subordinada à inteligência militar da Rússia. Em junho, as autoridades ucranianas abriram uma investigação sobre um soldado dessa unidade por usar um drone para atingir civis. Além desse caso, pouco se sabe sobre as operações dessa unidade. Exceto que ela recebeu drones.
Há também a 205ª Brigada de Rifles Motorizados, que opera na região de Kakhovka e parece se concentrar em atacar veículos militares e civis: estacionados ou em movimento, com ou sem passageiros. Vídeos desses ataques, que mostram drones liberando suas munições e explosões, foram repetidamente compartilhados no Telegram, principalmente por um conhecido blogueiro militar especializado na região de Kherson.
A DW conseguiu localizar a posição geográfica de 15 ações atribuídas a essa unidade de infantaria. A 205ª Brigada de Rifles Motorizados reivindicou publicamente a responsabilidade por vários ataques de drones em Berislav, a maioria dos quais dirigidos contra veículos. Eles foram "todos destruídos", escreveu um piloto de drone no Telegram. Ele afirmou que não havia civis na área.
Ele está se incriminando com esse comentário, pois não está tentando evitar vítimas civis, diz o advogado Wayne Jordash. Na verdade, ele "decide que todo indivíduo é um alvo militar legítimo".
Um novo tipo de drone
A terceira unidade é chamada BARS-33, um grupo de voluntários também conhecido como Batalhão Margelov, em homenagem a um famoso general do Exército Vermelho. O batalhão BARS-33 foi criada para apoiar as forças regulares e enviada à área em maio de 2023. A decisão de criá-lo remonta a Vladimir Saldo, hoje o governador da parte de Kherson controlada pela Rússia.
Até hoje, ele continua sendo um dos seus principais apoiadores, juntamente com Konstantin Basyuk, um ex-agente da KGB e que agora também representa a região ucraniana ilegalmente anexada de Kherson como senador no Conselho da Federação Russa em Moscou. Em outubro de 2023, Saldo anunciou no Telegram que a unidade havia testado um novo drone FPV durante o combate, chamado Veles.
O BARS-33 postou vídeos usando esse drone para atingir o que afirmou serem militares ucranianos. A DW identificou os locais onde esses ataques ocorreram. Todos tiveram como alvo Berislav e arredores. O Veles é produzido por uma empresa chamada Aero-Hit, no extremo leste da Rússia.
A empresa está intimamente associada a Basyuk. Em junho, o Departamento do Tesouro dos EUA impôs sanções à Aero-Hit, afirmando que "os drones Veles foram usados pelas forças russas baseadas em Kherson contra alvos ucranianos".
Essas sanções não afetam a produção, afirmou o presidente da empresa, Viktor Yatsenko, que se gabou numa entrevista sobre "400 missões de combate bem-sucedidas" do novo drone. O "cliente-alvo" é o batalhão voluntário BARS-33, declarou.
Quando confrontada com os resultados dessa pesquisa, a Aero-Hit explicou que é "uma empresa não militar e não coopera com o Ministério da Defesa". Talvez não seja possível provar quem de fato ordenou e executou os ataques a civis e à infraestrutura civil em Berislav. As investigações, no entanto, apontam na direção dessas três unidades.
A DW conseguiu verificar que a 10ª Brigada de Propósitos Especiais, o 205º Batalhão de Rifles Motorizados e o batalhão BARS-33 operaram drones na área. Além disso, é certo que um novo drone russo doméstico está sendo testado na região de Kherson. Como lembra Lyubov Kindrat, que sobreviveu a ataques do drone, "eles fizeram os testes na população local".
Várias outras fontes que a DW ouviu testemunharam de forma independente que Berislav tem sido efetivamente usada como campo de treinamento para os operadores de drones russos aprimorarem suas habilidades. A DW solicitou ao Ministério da Defesa da Rússia, aos políticos Vladimir Saldo e Konstantin Basjuk, ao batalhão voluntário BARS-33 e aos administradores de dois canais relevantes do Telegram uma declaração sobre os resultados dessa pesquisa. Nenhum respondeu às perguntas.