Abusos militares, a outra face da guerra contra o narcotráfico no Equador
14:48 | Fev. 27, 2024
"Atiraram para me mataram e mataram Javier", conta Eduardo Velasco, que se recupera de um ferimento a bala provocado por soldados. O incidente ocorreu em uma blitz militar no Equador, onde se multiplicam as denúncias de abusos das forças públicas na guerra contra o narcotráfico.
Em 2 de fevereiro, este homem de 34 anos dirigia com seu primo, Javier Vega, de 19, para vender um animal de estimação na cidade de Guayaquil (sudoeste), uma das mais violentas do país.
Segundo o documento judicial, Velasco seguiu em frente, apesar da restrição ao tráfego e o pneu de seu carro passou por cima do pé de um militar. Ele afirma que, ao dar ré, colidiu com um carro patrulha.
"Nesse momento ouço uma detonação, meu primo me segura (...) Vejo que sua cor muda, fica pálido", conta à AFP Velasco, que está em prisão domiciliar por suposto crime de ataque e resistência.
"Vejo que o tiraram (Javier), o agrediram e pisaram em sua cabeça", lembra.
Incapaz de continuar dirigindo por causa do tiro no ombro, Velasco também acabou no chão, pisoteado por militares, segundo seu relato.
Sem antecedentes criminais, Javier Vega morreu um dia depois com quatro tiros que destroçaram seus pulmões, o estômago e a coluna.
O Comitê de Direitos Humanos (CDH) acompanha a família neste caso, um dos muitos de suposto uso excessivo da força por parte de militares em meio ao estado de exceção que vigora desde janeiro no Equador.
Segundo ONGs, as denúncias de abusos de militares se multiplicam desde que o presidente Daniel Noboa declarou o país em "conflito armado interno" e mobilizou suas tropas em ruas e prisões para combater cerca de 20 organizações consideradas "terroristas".
A AFP analisou 18 vídeos que circularam nas redes sociais entre 11 de janeiro e 4 de fevereiro em diferentes províncias. Ao menos em dez checagens foram vistos abusos como surras nas ruas durante o toque de recolher noturno. Dentro das prisões, foram registradas humilhações ou explosões de bombas de gás lacrimogêneo muito perto do rosto de presos seminus e subjugados.
Laura Ipanaqué quer limpar o nome do filho, Javier, a quem as Forças Armadas tacharam de "terrorista".
"Ninguém vai preencher este vazio que deixaram dentro de mim, esta dor que sinto", afirma a mulher, de 41 anos.
A juíza encarregada do caso determinou que o Ministério Público investigue uma suposta extrapolação de funções por parte dos militares.
O advogado Fernando Bastias, coordenador do CDH, explica que "o uso desproporcional da força fora das prisões (...) é muito complexo de monitorar porque está acontecendo em quase toda parte e as pessoas acreditam que é normal porque há um estado de exceção".
"Temos visto gente agredida, humilhada por desrespeitar o toque de recolher", afirma.
O panorama é similar nos presídios sob controle militar.
Durante uma audiência apoiada pelo CDH para que 18 reclusos tenham acesso a atendimento médico, alguns relataram supostas torturas, inclusive com choques elétricos.
"Fizeram com que abrisse as pernas e me deram (uma pancada) nos testículos, me bateram com um cabo nas costas", contou um preso.
Um juiz informou que houve violações aos direitos humanos e determinou que fossem punidas.
A AFP pediu entrevistas ao ministério da Defesa e às Forças Armadas, mas as duas instâncias recusaram os pedidos.
Paralelamente, as Forças Armadas divulgaram vídeos de presos sob estrita disciplina militar enquanto fazem exercícios, varrem o chão, cantam ou dizem estar em melhores condições dentro das prisões.
A ONU pediu ao Equador uma resposta "proporcional" à onda de violência.
Noboa, de 36 anos, defende sua política de linha-dura.
"Que nenhum antipatriota venha dizer que nós estamos violando os direitos de ninguém, quando o que estamos fazendo é proteger os direitos da grande maioria", disse recentemente o presidente mais jovem do Equador, cercado de militares.
Para Fernando Bastias, estas declarações aumentam a polarização e o caminho para uma eventual reeleição presidencial diante de um eleitorado esgotado da guerra entre quadrilhas criminosas que deixou em 2023 um recorde de 46 homicídios por 100.000 habitantes.
Segundo o especialista, assumir o controle das prisões controladas pelas quadrilhas é o "correto", mas "exercer a tortura como uma espécie de castigo (...) é proibido pelo direito internacional humanitário".
Ao invés de promover a "administração da justiça", impulsiona-se um "sentimento de vingança", avaliou.
A decisão sobre as violações contra os 18 presos é um exemplo da necessidade de se "deter" a "brutalidade com a qual as Forças Armadas estavam exercendo maus-tratos dentro da prisão", acrescentou Bastias.
Para sua organização, a militarização das prisões onde morreram mais de 460 detentos desde 2021 esconde uma dívida pendente: a depuração da força pública, atingida por escândalos de corrupção, violações dos direitos humanos e narcotráfico.
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