Como funciona a 'motosserra' de Milei para transformar a Argentina?
A história argentina não tem precedentes de uma mudança tão drástica e ampla como a que Milei pretende impor
17:41 | Dez. 22, 2023
O presidente argentino, o ultraliberal Javier Milei, decidiu modificar ou revogar, mediante um megadecreto, mais de 300 leis e normas, em um um projeto tão ambicioso quanto polêmico para tentar liberalizar a segunda economia da América do Sul.
A história argentina não tem precedentes de uma mudança tão drástica e ampla como a que Milei pretende impor com sua "motosserra", transformada em um símbolo da determinação para reformar o Estado argentino, suas regulamentações e feudos, mediante enormes cortes nos gastos públicos.
Nada semelhante aconteceu nos governos democráticos de qualquer orientação política, nem tampouco nas ditaduras que assolaram a Argentina, um país rico em recursos naturais e grande exportador de alimentos, hoje mergulhado em uma crise com inflação superior a 160% ao ano e a insatisfação social generalizada entre seus 46 milhões de habitantes.
O que muda na vida cotidiana?
Dez dias depois de assumir a Presidência, às vésperas das festas de fim de ano e com o Congresso em recesso, Milei apresentou ao país seu Decreto de Necessidade e Urgência, com 366 artigos.
Ele revoga a lei de aluguéis, liberando por completo a relação entre proprietário e inquilino, sem prazos, sem limites nos aumentos e inclusive permite pagamentos em qualquer moeda, o que o próprio Milei reconheceu como uma "pré-dolarização" da economia.
O decreto elimina a lei de abastecimento, que visava a impedir a especulação dos grandes fornecedores de alimentos, justo quando os preços dos itens de primeira necessidade estão fora de controle.
São revogadas, também, as normas de proteção aos trabalhadores: aumentam de três a oito meses os períodos de experiência. Modificam-se a favor das empresas os regimes de indenização por demissão sem justa causa e serão suprimidos os convênios trabalhistas em vigor desde 1975 para discutir novas disposições.
A "motosserra" de Milei atinge, inclusive, o negócio do futebol, com a criação de Sociedades Anônimas Esportivas, apesar da recente assembleia da Associação do Futebol Argentino (AFA) ter reafirmado o regime de sociedades civis sem fins lucrativos, com os votos de mais de mil entidades e apenas uma dissidência.
Fica proibido eliminar exportações de qualquer índole e são liberados os serviços de internet digital, abrindo explicitamente as portas à empresa Starlink, gerenciada pelo bilionário Elon Musk, que já se declarou fã do presidente argentino em sua rede social X, o antigo Twitter.
O que visa o decreto?
Economista e libertário, Milei prometeu, durante a campanha, abrir a economia por completo às importações, sem proteger nenhum setor, nem mesmo as pequenas e médias empresas, no momento em que a pobreza passa dos 40%.
"O objetivo é começar o caminho de reconstrução do país, devolver a liberdade e a autonomia aos indivíduos e começar a desmontar a enorme quantidade de regulamentações que têm detido, entorpecido e impedido o crescimento econômico", explicou Milei.
A quem protesta, responde: "pode ser que tenha gente que sofre de síndrome de Estocolmo. Estão apaixonados pelo modelo que os empobrece."
Os bancos poderão cobrar, sem limites, taxas de juros de mora em cartões de crédito, no momento em que grande parte da população está endividada para financiar inclusive a compra de alimentos.
O decreto também revoga a lei de mobilidade da aposentadoria, que previa reajustes regulares aos pensionistas. Os eventuais reajustes ficarão a cargo do governo.
O direito à greve, consagrado na Constituição, fica limitado ao mínimo com a exigência do cumprimento de 50% a 75% das atividades.
É constitucional?
"O que dizem a Constituição e a jurisprudência da Corte Suprema de Justiça é que, a princípio, as leis não podem ser modificadas por decreto e o presidente não pode substituir o Congresso", explicou o advogado constitucionalista Emiliano Vitaliani.
O decreto é duramente criticado pela oposição, que o considera um impulso de um presidente que não tem maioria no Congresso.
Germán Martínez, líder da bancada opositora União pela Pátria (peronista) assegurou que "este não é o caminho" e pediu ao presidente que convoque sessões parlamentares extraordinárias. "Envie as reformas como projetos de lei. Não tenha medo do debate democrático", disse.
O A Liberdade Avança, partido de extrema direita de Milei, tem apenas 40 dos 257 assentos na Câmara dos Deputados e sete das 72 cadeiras no Senado. O peronismo, agora na oposição, é a principal minoria nas duas Casas, mas a dispersão predomina com a criação de novos blocos.
Para a cientista política Lara Goyburu, a decisão "extrapola todos os limites, decretando em muitas matérias que precisam de acordos políticos no Congresso e das províncias".
Pode ser rejeitado?
Para sua entrada em vigor, um decreto de necessidade e urgência só precisa ser publicado, embora deva cumprir com o trâmite de ser apresentado ao Parlamento, explicou Vitaliani.
Para invalidá-lo, é requisito que seja rejeitado tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado. Se uma das duas Casas o aprovar, ou inclusive se não for tratado, mantém sua validade, que entraria em vigor em 29 de dezembro.
A outra forma de anulá-lo é pela via judicial. Este mecanismo permite apresentar recursos sobre cada uma das regulamentações. A Confederação Geral do Trabalho estuda essa possibilidade, assim como a convocação de uma greve geral.