O último navio negreiro dos EUA e uma 'cidade de revoltas' expõem o racismo em Sundance

12:58 | Jan. 22, 2022

Por: AFP

Do último navio negreiro conhecido ao treinamento das forças de ordem para reprimir manifestações pelos direitos civis nos anos 1960: a história repleta de racismo dos Estados Unidos é colocada sob os holofotes em Sundance esta semana.

"Descendant" e "Riotsville, USA" são dois dos vários documentários e filmes sobre justiça racial exibidos neste festival de cinema independente, que será realizado em formato online pelo segundo ano consecutivo devido à pandemia.

Em "Descendant", que estreia neste sábado, Margaret Brown retorna à sua cidade natal no Alabama, onde o navio "Clotilda" desembarcou com 110 escravos em 1860, décadas após a proibição do comércio transatlântico.

Muitos descendentes desses escravos ainda vivem na mesma comunidade e as histórias sobre seus ancestrais foram passadas de geração em geração. Enquanto isso, a família dos proprietários do navio continua a possuir muitas terras na área.

Mas os restos do navio - deliberadamente afundado por seu dono para fugir da justiça - só foram encontrados em 2018. E localizar destroços de navios negreiros é extremamente incomum.

"Eu sabia que se o barco fosse encontrado seria uma prova. É uma forma das pessoas seguirem os rastros de seus ancestrais de uma forma que nunca aconteceu nesse país", disse à AFP Brown, que começou as filmagens há seis anos.

Os descendentes, cujos ancestrais escaparam da escravidão cinco anos depois com o fim da Guerra Civil, ainda vivem em áreas marginalizadas, cercadas por zonas industriais que emitem poluentes ligados ao câncer.

Segundo a produção, algumas dessas fábricas chegaram a ser construídas em terrenos da família Meaher, à qual também pertencia "Clotilda".

Apesar de cooperar com Brown em um documentário anterior, ninguém da família Meaher quis falar com ele para "Descendant".

"As pessoas estavam com medo", disse Brown.

"Esta história é uma maneira de focar a conversa na compensação", acrescentou.

"Compensação pode ser vista como uma palavra de armadilha. Mas não há nada de armadilha na justiça. Espero que o filme possa abrir conversas sobre justiça."

Um dia antes, "Riotsville, USA" estreou em Sundance, no qual Sierra Pettengill desenterra imagens de cidades-modelo falsas usadas pela polícia e militares na década de 1960 para reprimir protestos pelos direitos civis.

Imagens de arquivo perturbadoras mostram -entre outras coisas- arquibancadas cheias de líderes militares rindo e aplaudindo enquanto um homem negro é conduzido a um novo veículo de controle de distúrbios -de última tecnologia para a época- diante de fachadas falsas com o nome "Riotsville", a cidade das revoltas.

"A CIA está ali, agentes do serviço secreto estão ali, chefes de polícia, membros dos mais altos escalões das forças armadas, políticos, senadores", disse Pettengill à AFP.

"E ver aquele grupo de pessoas rindo de algo tão sombrio quanto isso - e apenas o fato de ter sido recriado - acho que é muito revelador sobre as atitudes da época", assegurou.

As ruas de "Riotsville", mostradas em arquivos de treinamento militar e gravações da mídia, foram criadas em resposta aos protestos e tumultos ocorridos em dezenas de grandes cidades americanas no final da década de 1960.

Sem visar explicitamente as minorias raciais, os exercícios distinguiam entre "manifestantes brancos e o que eles chamaram de 'agitadores profissionais extremos', que obviamente eram todos negros", disse Pettengill.

A organizadora do Sundance, Tabitha Jackson, afirmou à AFP que a injustiça racial é um dos vários temas de "responsabilização" que foram abordados pelos cineastas na edição deste ano.

"Estas são as questões do momento, especialmente neste país", disse Brown, destacando a batalha em curso pelos direitos de voto nos Estados Unidos, onde os democratas denunciam um ataque de estados conservadores para dificultar o voto das minorias raciais.

Ver as origens de sistemas como a militarização da polícia "é empoderador para perceber que podemos desmantelá-los", acrescentou.

"Nós não vivemos na inevitabilidade. Mas no geral, isso diz muito sobre a forma como vivemos agora e não há um número para ligar para resolver o problema. Depende de nós", concluiu.

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