Sob o Talibã, LGBTQs afegãos vivem com medo da morte

Autor DW Tipo Notícia

Khalid é gay, Danish é transgênero, ambos são afegãos. Numa sociedade conservadora, agora sob regime fundamentalista islâmico, ser LGBTQ pode significar a morte. A única esperança é o refúgio no exterior.Há semanas, Danish vive na penumbra. Desde a ocupação de Cabul pelos talibãs, ele se esconde no quarto dos fundos sem janelas de uma loja da capital afegã, que pertence a um amigo e agora está fechada. Sob o regime dos fundamentalistas islâmicos, Danish está ameaçado de morte, por ser transgênero. Criado como menina, desde os 13 anos de idade ele sabe que está no corpo errado, um corpo que "odeia". Nas fotos que envia, acentua a roupa masculina, os cabelos são curtos. Um grande desafio é matar o tempo: "Não faço nada, além de respirar." De noite, toma pílulas para dormir, a fim de evitar ficar ruminando os pensamentos. "Meu raciocínio está como paralisado, fico maluco de tanto pensar." Se pudesse, ficaria à beira do mar e gritaria "até a minha garganta rasgar, e me livrar de todo o meu ódio", afirma o afegão. "Preciso de paz, quero viver em um lugar livre e seguro. Eu só quero viver do jeito que eu sou." Ele estudou literatura, as palavras são sua válvula de escape. Comunicação com o mundo exterior, porém, só através do celular, com pouquíssimos interlocutores. Seu confidente mais íntimo é o amigo Khalid, homossexual e, como Danish, circulando pelos 25 anos de idade. A DW esteve em contato diário com ambos desde o começo de setembro, através de um serviço de mensagens criptografado. Seus nomes foram alterados por motivos de segurança. Crime: ser feminino Khalid foi previdente: enquanto os talibãs avançavam sobre Cabul, trocou o jeans e o moletom com capuz pelas vestes tradicionais afegãs. Até uma barba deixou crescer, só para não chamar a atenção. "Sou um tipo feminino", diz. E isso já basta para colocá-lo em perigo. Em 15 de agosto, o dia em que o Talibã tomou a capital, saiu do seu quartinho para providenciar mantimentos, achando que estava bem preparado. Mas suas medidas de precaução não bastaram. No meio da rua, súbito sentiu uma dor surda. "Atrás de mim estava um 'talib', eu não vi chegando." O homem o golpeara com um enorme tubo de plástico no ombro direito, "as lágrimas de dor me saltaram aos olhos". "Por que é que está andando assim, que nem mulher? Não sabe andar direito?", rosnou o extremista. Desde então, Khalid se trancou em casa. Prisão, amputações, morte Sob a lei dos novos senhores afegãos, LGBTQs como Khalid e Danish têm motivos para temer pela própria vida. Apenas duas semanas antes da tomada de poder, um juiz talibã declarou, em entrevista ao jornal alemão Bild, que para um homem que faz sexo com outro homem só existem duas punições possíveis: "Ou apedrejamento, ou ele fica atrás de um muro que vai cair em cima dele. O muro deve ter de 2,5 a 3 metros de altura." No fim de setembro, então, o mulá Nooruddin Turabi, um alto membro fundador do Talibã, afirmou à agência de notícias AP que o governo voltaria a realizar execuções e amputações de mãos. Como no primeiro regime talibã no Afeganistão: segundo um relatório do governo australiano, entre 1996 e a queda dos fundamentalistas em 2001, homossexuais eram executados com regularidade. Na época, o ministro da Justiça era Turab. Nos governos subsequentes, encabeçados por Hamid Karzai e Ashraf Ghani, indivíduos LGBTQ não estavam mais ameaçados de pena de morte. Porém segundo o Código Penal afegão, relações sexuais fora do matrimônio entre um homem e uma mulher permaneciam fundamentalmente proibidas e puníveis. Em 2018, sob o presidente Ghani, foi aprovada uma nova lei prevendo penas de dois a três anos de prisão para as relações sexuais com o mesmo sexo. A discriminação cotidiana é onipresente, da mesma forma que a violência. Tanto Danish como Khalid sentiram isso na própria pele: ambos foram brutalmente espancados e banidos pelas famílias devido a sua identidade sexual; ambos têm bem poucos seres humanos em que confiam. Namoro sob nome falso Não existe uma comunidade queer aberta em Cabul, afirma Khalid numa ligação telefônica pelo serviço de mensagens codificado. Por razões de segurança, tudo acontece escondido. O namoro gay funciona principalmente através de um determinado aplicativo, onde todos usam nome e foto falsos – por exemplo, do ator hollywoodiano Tom Cruise. Indagado se já teve um relacionamento mais prolongado, Khalid ri brevemente: não, até o momento só histórias esparsas. "Você conhece o termo friends with benefits? Bons amigos e, de vez em quando, um pouco mais." O outro lado da moeda são os olhares atravessados, comentários – coisas que Khalid vivenciava sempre ao andar pelas ruas de Cabul. Apesar de culto e formado em economia, não encontra emprego. Por várias vezes foi convidado para entrevistas de emprego, trazia todas as qualificações necessárias. Mas no fim das contas, não era isso que contava. "Meus entrevistadores não se interessavam nem um pouco pela experiência que eu tenho", praticamente não faziam perguntas profissionais, "eles só zombavam de mim e riam da minha cara". Khalid está convencido de que o motivo fosse sua aparência feminina. Sem força para viver Em meados de setembro, Khalid está preocupado com Danish. Parece que o amigo está cada vez pior, psicologicamente. A solidão, a escuridão, a incerteza e o constante medo de morte estão consumindo o rapaz. Há 36 dias ele não vê nenhum ser humano em pessoa, só se alimenta de água e biscoitos secos. Uma vida "como um animal", queixa-se. Danish manda fotos suas: tatuagens adornam braços, mãos, pescoço. Há uns três anos ele mandou fazer a primeira. Também elas são tabu na sociedade conservadora afegã, explica. E, sob os talibãs, radicalmente proibidas. Uma das tatuagens traz o nome da mulher que ele ama. Eles estiveram juntos por dois anos, eram muito felizes, conta. Até que a relação foi descoberta: quando os pais souberam que ela estava com um transgênero, a forçaram a se casar com outro homem. Há anos ele não sabe da moça. Em outras fotos se veem hematomas: nos braços, costas, coxas. Faixas vermelho-arroxeado, contusões, certamente com uns 20 centímetros de comprimento. "Foi o meu pai": desde esse dia em que foi espancado assim, Danish nunca mais esteve com a família. Virada inesperada O tom das mensagens de Danish é muitas vezes desesperado: ele só queria que tudo simplesmente acabasse, não tem mais força para otimismo. E aí, no fim de setembro, o quadro muda radicalmente de uma hora para outra. Danish e Khalid conseguiram ser incluídos na lista de evacuações de ONGs estrangeiras especializadas em socorrer LGBTQs em apuros. Em 25 de setembro, 41 dias após a tomada de poder pelo Talibã, ambos embarcam num avião da Pakistan International Airlines com destino a Islamabad. "Estou me sentindo como um pássaro. Só preciso abrir as asas e sair voando" – descreve Khalid seu estado de espírito naquele momento, numa mensagem de áudio. Sonhos para o futuro No Paquistão, os dois amigos são alojados em safe houses, onde permanecem até todos os documentos serem examinados e eles poderem apresentar seus requerimentos de refúgio junto a terceiros Estados. Danish gostaria de ir para os Estados Unidos. Seu sonho é fazer música: "Eu desejo um dia dar um concerto em plena Nova York e cantar diante de uma multidão." Khalid preferiria o Canadá: conhecidos gays lhe contaram que lá a comunidade LGBTQ é tratada com respeito, e todos podem viver com dignidade. Um pequeno desejo, Khalid já realizou: ele pintou as unhas, de amarelo, laranja, cor-de-rosa e azul. O esmalte o deixa feliz, depois de muito tempo ele agora tomou coragem de voltar a usar. Ao ver os vidrinhos numa loja de Islamabad, comprou logo vários: "Eu simplesmente não pude resistir." Autor: Esther Felden

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