Montanhas Kong: o caso da cordilheira que passou um século nos mapas, mas nunca existiu

Elas eram descritas com os cumes cobertos de neve em boa parte do ano - mesmo localizadas nos trópicos. Com sua altura, tocavam o céu. O problema é que nunca existiram

16:46 | Fev. 05, 2021

Por: Melissa Carvalho
Mapa com as Montanhas Kong feito por Adrien Hubertem Brué, em 1828 (foto: Reprodução/Princeton Library)

Localizadas no oeste do continente africano, as Montanhas Kong estiveram estampadas nos mapas por 100 anos, entre o fim do século 1800 e boa parte do 1900. Batizadas com o nome da capital do império onde hoje se encontra a Costa do Marfim, as montanhas alcançavam o céu e seus cumes ficavam cobertos de neve durante boa parte do ano, segundo relatos em documentos da época. Características curiosas para uma cordilheira que se encontrava tão perto das linhas dos trópicos. Mais curioso ainda é que, mesmo sendo destaque em antigos mapas da África, essas nunca existiram.

Segundo o portal BBC News Brasil, o primeiro homem a documentar a existência das Montanhas Kong foi Mungo Park, explorador escocês que estava em busca da nascente do rio Níger entre 1795 e 1797. Park viajou pelo interior africano, onde hoje localizam-se Senegal e Mali. Em 1799, foi publicado seu relato de viagem em um jornal inglês, que continha ilustrações das formas rochosas encontradas pelo escocês. Os primeiros mapas das Montanhas Kong foram desenhados por James Rennell, um renomado cartógrafo inglês.

Ao longo dos anos, a imaginação das pessoas tornou as montanhas ainda mais cheias de particularidades. Nas descrições, elas ganharam tons de azul e eram ricas em ouro, sendo chamadas até de “Eldorado da África Ocidental”.

 

A descoberta do erro

Thomas Basset, conceituado professor de Geografia na Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, nos EUA, e coautor do artigo “As Montanhas Kong na cartografia da África Ocidental”, relatou à BBC que não há como afirmar que Park tenha inventado a existência das montanhas. "Provavelmente ele viu uma miragem, ou talvez algumas nuvens que pareciam montanhas. Então, perguntou a viajantes e mercadores se havia uma cadeia de montanhas naquela direção, e disseram a ele que sim", argumenta.

A contestação da existência das Montanhas Kong só aconteceu em 1889, quase um século depois da exploração de Mungo Park. O militar francês Louis-Gustave Binger foi o responsável por documentar o erro. Durante uma viagem ao longo do rio Níger, Binger percebeu que a cordilheira não existia e relatou à Sociedade Geográfica de Paris quando retornou para sua cidade natal.


Os mapas de Rennell, o Rio Níger e as lendas

Havia muitas questões acerca do curso e da nascente do Rio Níger. O cartógrafo James Rennell também tinha sua própria teoria e acreditava que o rio ia em direção ao leste e desaguava em um delta interior. A presença das montanhas confirmava o pensamento de Rennell, já que a cordilheira impedia o curso do rio para o sul. O rio Níger, na verdade, flui para o sul, até o Golfo do Benin.

O professor David Hélio de Medeiros, professor da graduação em Geografia da Universidade Estadual do Ceará (UECE), acredita que a história das Montanhas Kong pode ter sido inventada para sustentar a teoria de Rennell. “A existência das montanhas faz com que elas constituíssem como uma espécie de barreira intransponível, que iria então impedir que o rio Níger corresse em direção ao sul “, observa.

As representações de Rennell foram divulgadas em diversos mapas comerciais africanos e reproduzidas por outros cartógrafos, que atribuíram muitas variações para à cordilheira. O professor ainda reforça que, apesar do erro, na época já existia uma exigência de precisão científica na produção dos mapas.

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Com o descobrimento da inexistência das Montanhas Kong, países europeus, como a França, começaram a mostrar interesse em explorar aquela área. “Ao longo do século 1900, gradualmente, inúmeros reinos e feudos africanos se tornaram colônias europeias. Então, aquela barreira física, anteriormente intransponível, já não foi um fator limitante para essas políticas expansionistas”, explica Medeiros.