Guerra civil na Etiópia? Entenda o que houve no país e o que pode acontecer agora

O conflito, apesar das características internas, envolve sobremaneira a presença de atores internacionais na estratégica região do Chifre da África, em especial a Rússia

08:00 | Dez. 05, 2020

Por: Leonardo Igor
Refugiados etíopes no Sudão, principalmente da região de Tigray, onde ocorre o conflito entre o TPLF e o governo central (foto: Yasuyoshi Chiba/AFP)

Um ano após vencer o prêmio Nobel da Paz, o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, declarou no sábado, 28, vitória da sua incursão militar contra opositores na região rebelde de Tigray, no norte do país.

A ofensiva final sobre a capital regional, Mekele (onde vivem 500 mil pessoas e está a sede do governo regional), veio após meses de tensão e enfrentamento entre o governo central e esta área insurgente em que o Exército federal entrou no início de novembro para enfrentar a Frente de Libertação dos Povos de Tigray (conhecida pela sigla TPLF, em inglês), partido e guerrilha que comandava o país desde a década de 1990.

A ordem de Abiy Ahmed para um “ataque final” veio também cerca de duas semanas após a denúncia do massacre de Mai Kadra, no dia 12 de novembro, em que mais de seiscentos civis foram mortos com armas de fogo e lâminas ou simplesmente espancados até a morte. Segundo a Anistia Internacional, como o acesso à região está fechado, não é possível saber quem foi responsável pelo crime, mas o governo afirma ter sido o TPLF.

A despeito dos alertas e clamores da União Africana, dos países vizinhos, das potências estrangeiras, a situação degringolou desde o início da pandemia do novo coronavírus e descambou no conflito, neste que é o segundo país mais populoso do continente, localizado na estratégica região do Chifre do África.

Agora, as tropas do governo de Adis Abeba, a capital da Etiópia, caminham para um enfrentamento pulverizado dos militantes do TPLF nos arredores de Mekele e pelo interior. Para entender o conflito, é preciso entender como foi formado o Estado etíope atual, as origens do TPLF e a relação com os países vizinhos. Confira:

O orgulhoso império independente da Etiópia

Quando a Europa, os Estados Unidos e o Império Otomano sentaram para repartir a África na Conferência de Berlim no século XIX, apenas dois estados não ficaram sob poder dos estrangeiros: a Libéria, formada por ex-escravizados nos EUA e recém-independente dos norte-americanos; e o Império da Etiópia.

O império etíope era, na época da Conferência, um dos estados mais antigos do mundo. Sua monarquia estava estabelecida desde o século XIII e seus monarcas diziam descender do rei Salomão. O país englobava o que hoje é a Etiópia, a Eritreia, partes do Sudão e da Somália. Era, desde o início, um estado multiétnico e multirreligioso, lar de algumas das igrejas cristãs mais antigas do mundo - difundida ali muito antes das colonizações - e, inclusive, dos falashas, a única tribo conhecida de judeus negros.

A Itália, preterida na divisão da África, tentou semear no Estado etíope a gênese do seu império colonial. E o Império da Etiópia surpreendeu o mundo ao derrotar os italianos em 1896 na Batalha de Adwa, conservando sua independência. Os italianos retornariam quase 40 anos depois sob o comando do fascista Benito Mussolini e, em 1935, venceriam o país, iniciando a ocupação italiana em 1935, no que alguns consideram o início da Segunda Guerra Mundial.

O então imperador, Haile Selassie, foi à tribuna da Liga das Nações - anterior à Organização das Nações Unidas (ONU) - denunciar a invasão italiana na Etiópia, o primeiro país da África a ingressar no órgão criado após a Primeira Guerra Mundial. A ocupação dos italianos, no entanto, duraria até 1941, quando foram expulsos em uma coalizão dos etíopes com os britânicos.

Selassie foi uma figura única no país e grande defensor da união dos africanos, promovendo a fundação da Organização da Unidade Africana, que deu origem à atual União Africana, principal organização política do continente. Promoveu reformas e tentou modernizar o país através de obras de infraestrutura, mas também sufocou imprensa e perseguiu opositores. Também promoveu a anexação da Eritreia na década de 1960, o que levaria a um conflito de de 30 anos, encerrado em 1993.

Em 1974, em plena Guerra Fria, Selassie, considerado um deus por seguidores da religião rastafári, foi deposto por uma junta militar comunista chamada Dergue. Os novos governantes reforçaram a repressão e, em uma das regiões do país, parte da população se organizou em uma guerrilha para lutar contra políticas que, acreditavam, ameaçavam as tradições locais. Assim, nasceu a Frente de Libertação dos Povos de Tigray, a TPLF.

 

A questão étnica e os guerrilheiros

O Estado etíope é dividido em nove regiões (como estados) por etnia. As duas maiores etnias são os oromo e amhara, no entanto, desde a década de 1990, o governo central era controlado pelos tigrés, da região de Tigray.

Na década de 1970, sob o governo comunista Dergue, a Frente de Libertação do Povo Tigré (a TPLF), fundada em 1975, começou a crescer na população de Tigray, cristã e conservadora. Ao final da década, tinham mais de 4 mil guerrilheiros e haviam eliminado os rivais na região. Apesar disso, não tinham expertise para vencer o governo central.

No entanto, Tigray está na fronteira com o país arqui-inimigo da Etiópia, a Eritreia, onde os tigrés são o segundo maior grupo étnico. O TPLF e os eritreus passaram a colaborar. A região de Tigray iniciou um conflito contra o governo central - apoiado e armado pela União Soviética - que chamou atenção durante a década de 80 pelo derramamento de sangue.

Eles não foram os únicos grupos rebeldes a surgirem no país durante o governo Dergue. Em várias regiões, outros grupos étnicos pegaram em armas para tentar a secessão da Etiópia. No entanto, no final da década de 80, o TPLF era o maior, mais organizado e mais poderoso opositor do governo de Addis Ababa (capital da Etiópia).

Em 1991, apoiado pelos tigrés da Eritreia, o TPLF entrou na capital e depôs os comunistas. Tão logo assumiu o governo, pôs membros da etnia tigré nos principais cargos, no comando das Forças Armadas, dos serviços de inteligência, no governo. O TPLF, um partido político e uma guerrilha, iniciou ali o longo reinado no comando da Etiópia de uma etnia minoritária sobre grupos maiores.

Durante décadas, o TPLF foi a principal força política do país. Seu líder histórico, Meles Zenawi, governou de 1991 a 2012, quando faleceu. Foi substituído pelo primeiro-ministro Hailemarian Desalegn, de outra etnia (também minoritária), mas cuja coalizão que o levou ao poder era comandada pelos tigrés, que continuaram a governar na prática.

 

Abiy Ahmed, o reformista

O governo de Hailemarian Desalegn durou até 2018, quando uma série de protestos por todo o país praticamente o pôs de joelhos. Com uma população superior a 100 milhões de pessoas, alto desemprego entre os jovens, pobreza generalizada e conflitos interétnicos no Sul do país - onde guerrilhas independentistas continuam a atuar -, e após décadas de um governo controlado por um grupo minoritário, a insatisfação levou à ebulição social e a queda da coalizão governista.

Quando Desalegn renunciou, um jovem reformista, Abiy Ahmed, da etnia oromo (a maior do país), foi indicado para o cargo de primeiro-ministro. Abiy pediu desculpas pelas mortes causadas pelo governo na repressão aos protestos, autorizou a atuação da oposição no país, perdoou presos políticos e convidou exilados a retornar. Também liberou a imprensa e afrouxou os rígidos controles que o governo exercia sobre a internet. Sobretudo, procurou a paz com a Eritreia, país com o qual a Etiópia voltou a trocar hostilidades desde 1998 em um conflito fronteiriço.

O jovem primeiro-ministro conseguiu a paz com a Eritreia, e em 2019 ganhou o Nobel da Paz por isso. Ele era um símbolo: filho de pai oromo muçulmano e mãe amhara cristã (os dois maiores grupos étnicos e maiores religiões do país), jovem em um país com população jovem, prometeu desestatizar a economia e reformar as leis repressivas.

Mas outros gargalos continuam: apesar de ter liberado a atuação da oposição, grupos civis continuam proibidos; ele prometeu eleições livres e multipartidárias, mas sua coalizão controla tudo - governo, Parlamento, Forças Armadas e Justiça. Abiy integrou os governos dos tigrés, embora em uma ala que fazia oposição interna ao grupo no poder - e foi responsável por criar o órgão de monitoramento do Exército que controla a internet do país.

Abiy iniciou uma reforma política para reduzir o número de partidos políticos no País - mais de cem -, que deve obrigar algumas legendas a serem incorporadas por outras. O governante defende a medida como necessária para tornar o país governável; a oposição diz que é uma tentativa de sufocar grupos menores e colocá-los sob controle de maiores.

Após assumir o governo, tomou medidas para expulsar o TPLF do controle do Estado: demitiu generais e ministros tigrés, substituiu tigrés do serviço de inteligência, montou uma nova coalizão multiétnica sem o controle TPLF, que começou a ser empurrado de volta para sua região de origem, Tigray, onde detém o governo regional. A paz com a Eritreia - de onde veio parte do apoio para o TPLF tomar o governo na década de 90 - deixou os tigrés etíopes ainda mais isolados no tabuleiro regional, já que não poderiam mais contar com o antigo apoio.

O que houve na Etiópia nos últimos dias

Neste ano, estavam previstas as primeiras eleições regionais sob o governo de Abiy Ahmed, a primeira em que partidos de oposição teriam liberdade. No entanto, com a pandemia do novo coronavírus, o governo central cancelou os pleitos. Àquela altura, o TPLF havia se recusado a ser dissolvido e incorporado a um novo partido criado por Abiy. A região também se recusou a entregar procurados e ignorou o cancelamento do pleito e realizou eleições em Tigray, nas quais saiu vitorioso.

Após isso, o governo em Addis Ababa cortou o orçamento federal para a região. A tensão continuou conforme as duas partes subiam o tom, até que, no início de novembro, houve relatos de grupos armados do TPLF em ataques a bases do Exército em Tigray. Disparados os primeiros tiros, o prêmio Nobel da Paz iniciou imediatamente sua ofensiva e as tropas federais começaram a tomar a região.

O TPLF, que já foi a maior força paramilitar do país, prometeu lutar até a morte. O medo do conflito e de casos como o massacre de Mai Kadra, ocorrido já durante os confrontos, criou uma onda de refugiados que foram em direção ao Sudão - mais de 43 mil, segundo a Associated Press. Conforme as tropas de Abiy se aproximavam da capital de Tigray, Mekele, o atual líder do TPLF, Debretsion Gebremichael, fugiu. No sábado, 28, o governo central declarou vitória na ofensiva contra o partido tigré. O TPLF nega a derrota e afirma que a luta continua.

No entanto, a imprensa internacional tem dificuldade para confirmar a verdadeira situação em Tigray. O acesso à região foi proibido e os sinais de celular e de internet, cortados. O pouco que se sabe vem das versões oficiais e das vítimas que fugiram do confronto. Apesar do intrincado pano de fundo étnico na história recente do país, o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), Mamadou Alpha Diallo, aponta que o atual enfrentamento não é motivado por isso, mas sim por um rearranjo de forças políticas internacionais na região.

“A etnia é um ponto, mas não o principal”, explica o docente, originário do Senegal. “Pode falar de conflito étnico, de conflito regionalista, mas o que importa aqui é que um conflito interno que entra em escopo de guerra indireta que vem sendo travada. Principalmente na região que é muito importante entre as potências, principalmente entre os EUA, a Rússia, que era a potência mais influente na região durante a Guerra Fria, e a China”. 

Em pronunciamento no Parlamento na segunda-feira, 30, Abiy afirmou que tomou a cidade de Mekele e as outras cidades de Tigray sem fazer vítimas civis. No entanto, ao jornal New York Times, médicos da região - que falaram sob condição de anonimato - descreveram um cenário diferente: o uso indiferenciado de artilharia pesada e drones por parte do governo central matou pelo menos 27 civis, feriu mais de 100, os hospitais estão lotados e falta de tudo para o atendimento - isto somente na capital.

Qual a importância da Etiópia?

A Etiópia é o segundo país mais populoso do continente africano. É, segundo o Global Firepower 2020, a sétima potência militar do continente, além de ser a oitava economia. No entanto, o que destaca a Etiópia é sua localização no Chifre da África. Esta área fica de frente para o Mar Vermelho, uma das rotas mundiais do petróleo, com o Estreito de Bab el Mandeb em uma ponta (conectando a região ao Oceano Índico) e o Canal de Suez na outra ponta (ligando a área ao Mediterrâneo).

Após a independência de territórios como a Somália e a Eritreia, a Etiópia ficou sem acesso ao Mar Vermelho. Contudo, por seu tamanho e número de habitantes, uma crise de larga escala entre os etíopes deve afetar o entorno, como já tem afetado: o Sudão recebeu mais de 43 mil refugiados - embora algumas fontes falem de 100 mil -; a Eritreia, com quem foi estabelecida a paz, foi alvo de foguetes disparados de Tigray.

Os EUA possuem pelo menos 34 bases militares na África, boa parte delas concentrada no Chifre da África, segundo o The Intercept. No Djibouti, por exemplo, que faz fronteira com a Etiópia e tem acesso ao Mar Vermelho, está aquela que é considerada a maior base militar de drones do mundo. Pela localização estratégica, os drones norte-americanos no Djibouti são utilizados principalmente no Oriente Médio.

Entre os principais envolvidos nas questões geopolíticas da África, o professor Mamadou Alpha Diallo destaca Rússia, China e EUA. “Por que as potências têm interesse ali? Primeiro, o controle dos portos de uma região importante para o comércio mundial. Segundo, a disputa pelos recursos energéticos de gás e petróleo. Essas recursos estão causando uma nova guerra, não uma guerra fria, mas uma guerra geopolítica”, aponta.

O docente aponta a Rússia de Vladimir Putin como a maior interessada no que ocorre ali, herdeira de boa parte dos contatos que os países tinham com a União Soviética. “O que tem de novidade é a Rússia. Qual mercado a Rússia pode entrar no continente africano? O mercado das armas. A Rússia não vende insumos”, exemplifica o Mamadou Diallo. 

De fato, segundo a consultoria GZero, especializada em relações internacionais e geopolítica, a Rússia é hoje o maior fornecedor de armas para o continente, com contratos com mais de 20 países, muitos dos quais os EUA pararam de fornecer armas durante a administração Obama por não cumprirem “questões de direitos humanos”. Os russos, inclusive, anunciaram recentemente uma nova base militar no continente, localizada no Sudão (vizinho à Etiópia), a primeira desde o fim da Guerra Fria e da União Soviética.

O que pode acontecer agora?

A despeito da declaração de vitória do primeiro-ministro etíope Abiy Ahmad, o atual líder do TPLF, Debretsion Gebremichael, em conversa por mensagem com a revista The Economist, afirmou que tem planos para “tomar nossas cidades de volta dos invasores”.

Enquanto na capital, Addis Ababa, multidões foram às ruas para comemorar a derrota dos tigrés, em Tigray, segundo a Reuters, protestos irromperam na capital Mekele com a presença das tropas federais, mas, sobretudo, com a presença de soldados da Eritreia, país com qual os etíopes estiveram em guerra por décadas.

Com efeito, para analistas internacionais, é pouco provável que o conflito tenha se encerrado. Isso porque o Exército federal tomou as principais cidades, no entanto, a maior parte da guerrilha do TPLF está no campo e nas montanhas. Após quase três décadas no poder, o partido conhece as deficiências, números e bases das Forças Armadas do país, que até pouco controlavam.

Contudo, a imbróglio mostrou que o TPLF não é mais imbatível. Sua derrota para o governo central foi mais rápida que os próprios líderes pensavam. Abiy também adquiriu novas armas, e o uso de drones pelo Exército foi decisivo. Boa parte da cúpula do TPLF, que estendeu a guerra contra os comunistas por 17 anos e tomou o poder em 1991, tem entre 60 e 70 anos.

Sobretudo, em sua base, Tigray, onde mais de 600 mil pessoas dependem de auxílio federal e internacional para sobreviver, com cidades já destruídas pelo rápido conflito, quanto apoio a guerrilha tigré vai angariar? E mais, por quanto tempo conseguirá se manter em guerra, agora também sem apoio dos tigrés da Eritreia?

Mamadou Diallo alerta que, apesar da situação, o conflito pode acirrar os ânimos regionais - dentro da própria Etiópia, há outras disputas do gênero, inclusive em Oromia, a região natal do primeiro-ministro. Não obstante, o desenlace depende, maiormente, de atores internacionais.

“A disputa por essa região tem uma ligação direta com o Oriente Médio, os países do golfo. China e Rússia são aliados em uns pontos, mas disputam em outros. A União Europeia, e especialmente a França, estão em uma fase muito negativa com a África. Como há uma dependência russa na União Europeia [o bloco é o maior parceiro comercial dos russos], a influência russa na África é usada como barganha para negociar com os europeus”, analisa.

No tocante ao comércio de petróleo, logo ali no Mar Vermelho, Mamadou afirma que não há riscos. E indica que, qualquer movimento dos Estados Unidos, em pleno processo de transição de governo, será decisivo para a região: “Nesse momento de crise, pode ser que isso mude rapidamente com a mudança de governo nos Estados Unidos. A postura do governo norte-americano pode mudar o cenário, passar de um momento de conflito para pacificação, para negociação. Outra possibilidade é uma pacificação interna”.

Sobre o futuro do conflito na Etiópia e de conflitos, de modo geral, no continente, o professor natural do Senegal, na África Ocidental, não é muito alvissareiro. “Com a disputa de potências estrangeiras no continente africano, a tendência é que isso se prolongue. E isso tem dois motivos: a África é o segundo maior mercado depois da China. Quando se projeta 2050, temos a maior população e a maior força de trabalho jovem. Outro elemento é a disputa energética. Me parece que, pelo menos pela próxima década, a gente vai continuar com uma disputa constante devido às disputas energéticas”, conclui.

 
Com informações do Guardian, Independent e Reuters