O Brasil caminha para um futebol mais igualitário?

Autor DW Tipo Notícia
Equiparação de diárias pagas a homens e mulheres pela CBF foi celebrada como histórica. Mas ao futebol feminino, marcado por passado de repressão política e cultural, ainda falta autonomia e um projeto de longo prazo.Antes de Marta dominar a cena no futebol feminino, o Brasil teve outra grande camisa dez, considerada uma das maiores jogadoras de todos os tempos. Sissileide Lima do Amor, a Sissi, liderou a primeira geração de mulheres a vestir a amarelinha, após quase 40 anos de proibição do futebol feminino no país.Convocada para o Mundial Experimental de 1988, torneio de estreia da seleção feminina, Sissi teve que resolver um problema de última hora antes da viagem para a China, a primeira que faria de avião. Ela ainda não tinha completado 18 anos e precisava de autorização da família para sair do Brasil, mas o pai viajara a trabalho.O jeito foi convencer a mãe, "super certinha", a falsificar a assinatura do marido. Deu certo, e o Brasil ficou em terceiro lugar na competição que serviu de teste para a realização da primeira Copa do Mundo de Futebol Feminino, em 1991.A realização do sonho de vestir a amarelinha ofuscou qualquer dificuldade. Para caber no uniforme que vinha das sobras da equipe masculina, as atletas dobravam os shorts e faziam graça da situação. "As baixinhas sofriam mais, a camisa ficava enorme. É claro que a gente ficou chateada, mas só queria representar o Brasil da melhor maneira possível", recorda Sissi.Os anos se passaram, e o romantismo debutante deu lugar às cobranças. A camisa dez se viu fora da convocação para a Copa do Mundo de 2003 devido ao boicote que sofreu por externar críticas à maneira como a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) conduzia o futebol feminino e reivindicar condições justas de trabalho, como a valorização das diárias pagas às atletas a serviço da seleção."Foi um momento muito delicado para mim. Eu vivia meu melhor momento no futebol, jogando na liga dos Estados Unidos com as melhores jogadoras do mundo", lamenta a ex-jogadora. Para quem sofreu na pele a represália por ter exigido mudanças, um anúncio feito há poucos dias trouxe muita felicidade.CBF equipara diáriasA CBF anunciou na última quarta-feira (02/09) que, desde março deste ano, equiparou as diárias pagas a atletas homens e mulheres das seleções brasileiras de futebol. Até então, Neymar e companhia recebiam R$ 500 por cada jornada de treino no Brasil, enquanto a metade era paga a Marta e às demais atletas.Em viagens internacionais, a diária das mulheres era mantida. Já a dos homens subia para 1.600 dólares, quantia mais de 30 vezes superior ao valor pago às atletas. Em seu perfil no Twitter, a ex-jogadora Alline Calandrini lembrou que o cachê da CBF durante seu início na seleção, em 2006, era de 25 reais.A equiparação das diárias não foi a única novidade divulgada pela CBF. Embora a seleção seja treinada hoje pela sueca Pia Sundhage, a gestão executiva do futebol feminino nunca tinha sido conduzida por mulheres. Agora, duas ex-jogadoras irão conduzir a gestão da modalidade.Ex-gerente do Internacional, Duda Luizielli estará à frente das seleções femininas. Já a coordenação das competições femininas ficará a cargo de Aline Pellegrino, capitã da seleção durante a campanha do vice-campeonato na Copa do Mundo de 2007 e diretora da modalidade na Federação Paulista de Futebol (FPF) por quatro anos."Momento histórico""É um momento histórico. Não esperava que isso fosse acontecer tão cedo. Mas antes tarde do que nunca. A repercussão foi grande aqui nos Estados Unidos", conta Sissi, que se estabeleceu no país onde encerrou a carreira. Aos 54 anos, ela treina atletas da equipe sub-12 e é diretora técnica em um clube da Califórnia.A experiência nos EUA despertou seu olhar para a importância do investimento nas categorias de base. Para a ex-jogadora, o futebol feminino no Brasil só poderá dar um salto de qualidade a partir de um projeto de longo prazo, com foco nas jovens atletas."É muito importante que Aline e Duda tenham carta branca e apoio para trabalhar. Os EUA começaram esse trabalho em 1988, não é da noite para o dia. Todos os anos, eles têm novas jogadoras na seleção. Quando falo em investir na base, eu me refiro a dar estrutura, criar um calendário e incentivar o futebol feminino nas escolas", diz.Proibição de quase 40 anosAs graves carências estruturais, no entanto, não constituem o único empecilho ao desenvolvimento da modalidade no Brasil. Em 1941, um decreto assinado por Getúlio Vargas no período do Estado Novo proibiu a prática do futebol por mulheres no território nacional.Assim como aconteceu em países como Alemanha e Inglaterra, onde as proibições foram mais curtas, o governo embasou a medida pela ameaça à "feminilidade". Em maio de 1940, o jornal varguista O Imparcial destacou o "surto notável" que vivia o futebol feminino, sobretudo no subúrbio do Rio de Janeiro, em meio à expectativa de sua proibição pelo governo."Parece, todavia, que extinguirá o football feminino. Isto acontecendo, terá dado S. Ex. provas categóricas que zela pelo reerguimento da raça, impedindo a prática de sports proibidos em todo o universo pelas maiores sumidades médicas", dizia o artigo.Tendo vigorado até 1979, a proibição deixou cicatrizes culturais. Há menos de 20 anos, quando já tinha uma carreira consolidada nos EUA, Sissi ficou balançada com um convite para voltar a jogar no Brasil, feito pela Federação Paulista. Mas não tardou para a animação dar lugar ao desalento.Com o suposto objetivo de atrair maior público para os jogos, a federação determinou que mulheres de cabelo curto não poderiam disputar o Campeonato Paulista de Futebol Feminino de 2003 — "regra" que afetava diretamente a ex-jogadora.Caminho próprioA historiadora Aira Bonfim, que pesquisa o desenvolvimento do futebol feminino no Brasil, afirma que a trajetória de repressão política e cultural enfrentada pelas mulheres no esporte colocou a modalidade em situação tão díspar que as soluções dos problemas não deve passar por comparações com o futebol masculino."É preciso reelaborar o conceito de profissionalização da modalidade, que não é igual à masculina. Dificilmente as cifras movimentadas chegarão a um mesmo nível algum dia. Gostaria que houvesse tanta autonomia a ponto de se vislumbrar uma confederação independente. Está claro que a CBF se entende como uma entidade do futebol masculino", avalia.A crítica da historiadora está alinhada à estratégia que Aline Pellegrino, nova Coordenadora de Competições Femininas da CBF, vinha implementando como diretora da modalidade na Federação Paulista há quatro anos. A partir de boas estratégias comerciais para o campeonato, os clubes paulistas se fortaleceram e, hoje, abrigam jogadoras da seleção, como a atacante Cristiane, maior artilheira dos Jogos Olímpicos, atualmente jogadora do Santos.Na gestão de Pellegrino, o torneio estadual passou a ser transmitido pela internet e, em fases finais, na televisão, superando a audiência de jogos da Premier League e da Bundesliga, ligas masculinas de Inglaterra e Alemanha, respectivamente. Durante entrevista ao podcast Passion Cast, em julho, Pellegrino defendeu a importância de entender o modelo de negócio próprio do futebol feminino para levar às marcas a "verdade" da modalidade."Nossa verdade é ter a Cristiane, jogadora reconhecida no mundo inteiro, vestindo a camisa do São Paulo, jogando a final contra o maior rival, e sendo abraçada pela torcida corintiana. Ou mesmo uma final na Arena Corinthians em que havia torcedores de outros times, e não só do Corinthians. Isso não tem no masculino. Que marca pode se interessar por isso?", questionou a executiva.Autor: João Soares

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