Conheça a cidade em que a fronteira entre dois países divide casas e lojas ao meio

A anomalia geográfica cria situações inusitadas: em uma mesma lojas, as pessoas andam por duas nações; quando querem fugir das leis de um país, basta atravessar a rua e ir a outro

08:00 | Ago. 23, 2020

Por: Leonardo Igor
A cidade de Baarle tem dois nomes: Baarle-Hertog, como é chamada na Bélgica; e Baarle-Nassau, seu nome nos Países Baixos. A cidade pertence aos dois (foto: Wikimedia Commons)

Já pensou ter a porta da frente da sua casa em um país e o quintal em outro? Ou, enquanto anda pela calçada, pisar sem querer em território estrangeiro? Ou saber que seu vizinho do lado ou da frente, nascido ali como você, paga imposto a outro governo, tem outro rei e outro passaporte? É este o cotidiano dos moradores do pequeno município de Baarle, uma lugarejo sossegado no norte da Europa, localizado nos Países Baixos. Isto é, em parte, já que outra parte da cidade está localizada na Bélgica. As informações são da BBC.

A anomalia geográfica faz com que muitas propriedades sejam atravessadas por fronteiras internacionais. É comum encontrar estabelecimentos em que metade das lojas estão em um país, e metade em outra. Ou seja, ao passar de uma prateleira a outra, você acaba por atravessar uma fronteira. O pedaço belga se chama Baarle-Hertog, já o neerlandês é denominado Baarle-Nassau.

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De fato, a municipalidade está localizada dentro no território neerlandês (mais conhecido no Brasil como holandês, embora a denominação não esteja exatamente correta visto que a Holanda é apenas uma região dos Países Baixos - que, no idioma local, se chama Nederland, daí o aportuguesado neerlandês). Ou seja, dentro do território neerlandês existem exclaves belgas, isto é, pedaços de terra pertencentes à Bélgica separados do restante do território. Vamos entender:

Origem

A situação complicada remonta à Idade Média. Esta região, como boa parte da Europa, ainda não era constituída por países unificados, mas por um retalho de principados e ducados com seus respectivos líderes. O Reino dos Países Baixos só foi formado em 1815, sob comando da Casa de Orange-Nassau, a mesma a ocupar o trono neerlandês ainda hoje, com o rei Guilherme. Na época, o território hoje correspondente à Bélgica, como o Ducado de Brabante, era parte do reino governado pelos Nassau.

 

Em 1831, estes territórios declararam independência e formaram a Bélgica. E aí começa a divisão de Baarle: a municipalidade está localizada no Ducado de Brabante. A aristocracia local se dividiu entre permanecer fiel à Casa de Nassau, nos Países Baixos, ou ao hertog, palavra neerlandesa para duque, do ducado de Brabante, que apoiou a Bélgica. Em meio à disputa, diferentes pedaços da mesma cidade ficaram na mãos de apoiadores distintos: Baarle-Nassau para quem estava com os Países Baixos, Baarle-Hertog para quem estava com a Bélgica. Inclusive, desde então, o herdeiro do trono belga recebe o título de Duque de Brabante.

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A confusão é tamanha que de 1831, quando tudo começou, as fronteiras só foram definidas exatamente em 1995. E cada linha é levada a sério. São 22 pedaços da Bélgica dentro dos Países Baixos, e oito pedaços do território neerlandês dentro do território belga. Nas casas, pequenas bandeiras indicam a que pedaço elas pertencem, enquanto nas ruas ou nas calçadas, sinais como o + apontam que ali há uma fronteira. A linha traçada por + é acompanhada por siglas: BL para Bélgica, N para Países Baixos (Nederland).


Cotidiano

As diferenças entre os dois municípios, que dividem a mesma área, não são difíceis de perceber. Os neerlandeses têm uma legislação para construções mais rígida, portanto as casas são mais padronizadas. Já os belgas são mais flexíveis, logo as casas tendem a ser arquitetonicamente mais diversas.

A situação gera arranjos curiosos. Como é mais difícil construir no lado neerlandês, muitos mudam o domicílio. Como? Ali, a localização de uma propriedade é definida pela porta de entrada. Ou seja, se a porta da casa está em uma rua que pertence aos Países Baixos, ela é neerlandesa e segue as leis do país. Mas, se acontece do quintal estar em um pedaço belga, quando querem escapar da legislação, os moradores simplesmente mudam o endereço para os fundos, por exemplo, e podem construir segundo as flexíveis leis belgas.

 

O município tem duas prefeituras e duas câmaras municipais, que precisam sempre estar em contato para resolver problemas. A Bélgica precisou pedir permissão aos Países Baixos para construir o prédio da prefeitura, que tem uma linha dividindo o salão de reuniões - indicando que ali há uma fronteira. Para o prefeito de Baarle-Hertog, Leo van Thilburg, a maior dor de cabeça, por exemplo, é pavimentar estradas. “A estrada sobre a qual o tubo está sendo instalado pode ser toda belga, mas quem paga se a tubulação tiver que ser ampliada por causa de casas holandesas nas proximidades? E quem paga pela iluminação pública, onde a calçada é belga, mas a luz ilumina janelas holandesas?", questiona Tilburg em entrevista à BBC.

Nos negócios, a anomalia geográfica também ressoa. Há uma história local sobre um antigo banco que foi construído propositalmente em cima de uma linha fronteiriça. Quando as autoridades fiscais de um país apareciam exigindo documentos, a gerência ordenava que os funcionários atravessassem com os papéis para o país vizinho - tudo dentro do mesmo prédio. Nos bares também há problemas: nos Países Baixos a idade legal para beber é 18 anos, na Bélgica, 16. Assim, se um belga de 17 anos pedir bebida a um neerlandês, deve ser recusado.

O neerlandês é o idioma das escolas nos Países Baixos, enquanto este pedaço da Bélgica fala francês. Fogos de artifício são liberados para os belgas, já os neerlandeses só podem comprá-los no Ano Novo. E por aí vão as diferenças entre os países que dividem o mesmo lugar. Atualmente, a maioria da população tem dupla cidadania. Ainda que não tivessem, as travessias fronteiriças não seriam problema, ambos os países são integrantes da União Europeia e signatários do Espaço de Schengen, que garante livre circulação entre os cidadãos do bloco.

 

Enclaves e exclaves

A situação do município de Baarle é explicada por dois conceitos geográficos peculiares: enclaves e exclaves.

Enclave é uma região que fica dentro de outra nação. O enclave é político e culturalmente diferente da área que o cerca, e costuma ter uma administração autônoma da área ao redor. É o caso, por exemplo, do reino de Lesoto. O país está completamente dentro do território da África do Sul, mas não é parte do Estado sul-africano - tem seu próprio governo, suas leis, seu povo e suas fronteiras delimitadas.

O exclave pode ser entendido como um pedaço de um Estado que não é contíguo ao resto do território, isto é, está separado do restante do território e cercado por uma nação diferente, como uma “ilha”, parte do país, mas separada. É justamente o caso de Baarle. A maior parte do território do município está nos Países Baixos, mas existem, dentro dos Países Baixos, 22 pedaços que pertencem a outro Estado, a Bélgica. Esses 22 pedaços são da municipalidade de Baarle-Hertog, e portanto está fisicamente separada do restante do território belga.

 

Ainda que este arranjo geográfico pareça estranho, também possui exemplares no Brasil. A cidade de Ladário, no Mato Grosso do Sul, é localizada completamente dentro do município de Corumbá. Mas são municipalidades diferentes, com suas prefeituras, leis e território. O mesmo acontece, por exemplo, em Poloni, no estado de São Paulo, cravada dentro do município Monte Aprazível; ou Portelândia, que fica dentro do município Mineiros, ambos em Goiás.

Curiosidades

Um enclave, rodeado por outro enclave, que estava cercado por um terceiro enclave

Bangladesh era parte do território indiano, mas ganhou independência. Ainda assim, a fronteira entre os dois ficou confusa. Desde a década de 70, existiam mais de 160 enclaves entre os dois países, ou seja, pequenos pedaços de um no território do outro. Mas a situação complicava ainda mais - existiam pelo menos 24 contra-enclaves, isto é, uma “ilha” dentro de uma “ilha” cercada por um país. Por exemplo, parte do estado indiano de Bengala Oriental ficava em Bangladesh, ou seja, era um enclave. Mas dentro desse enclave indiano no território bangladeshiano existia um pedaço… de Bangladesh. A situação chegava ao extremo na região de Dahala Khagrabari: o lugar era um enclave, rodeado por outro enclave, que estava cercado por um terceiro enclave, que por sua vez estava cercado por outro país.

Facilitando: dentro de Bangladesh existia uma “ilha” de território indiano. Dentro dessa porção de terra da Índia existia um território menor pertencente a Bangladesh, e dentro deste território bangladeshiano existia ainda um pedaço menor da Índia. Era Dahala Khagrabari. Felizmente, os dois países se entenderam, trocaram porções de terra e, após 70 anos, estes enclaves, contra-enclaves e contra-contra-enclave deixaram de existir.


Uma terra digna de James Bond

O lago Lugano é responsável por fazer parte da fronteira entre a Itália e a Suíça. Ainda assim, um pequeno pedaço escapou à divisão - é o enclave/exclave Campione D’Italia, inteiramente em território suíço. Os habitantes pagavam impostos à Itália, mas viviam em união econômica com a Suíça, que os fornecia serviços públicos, correios e usavam como moeda o franco suíço. As carteiras de motorista são suíças, bem como os telefones.

Por sua condição, se tornou um paraíso fiscal. Também é uma das únicas quatro cidades italianas com permissão para cassinos. Na Segunda Guerra Mundial, a Itália esteve com a Alemanha de Hitler, mas o território, ligado à Suíça, que declamou neutralidade, acabou em um limbo administrativo. Como resultado, os Estados Unidos instalaram ali uma divisão de inteligência, tecnicamente no território de Mussolini, a apenas um quilômetro dos inimigos. Espiões, cassino, guerra, luxo… Parece enredo de James Bond, não?