Como foi o ataque e o que viram os japoneses de Hiroshima sobreviventes da primeira bomba atômica

Em 1945, Hiroshima era um dos únicos grandes centros urbanos do Japão que não havia sido bombardeado. Mais tarde, sobre a Cidade, foi lançado o primeiro ataque nuclear da história

15:26 | Ago. 06, 2020

Por: Leonardo Igor
tirada em 6 de agosto de 1945 pelo Exército dos EUA e divulgada pelo Museu Memorial da Paz de Hiroshima mostra uma nuvem em forma de cogumelo da bomba atômica lançada pelo bombardeiro B-29 Enola Gay sobre a cidade de Hiroshima (foto: FOTO AFP / MUSEU MEMORIAL DE PAZ HIROSHIMA)

Às vésperas da explosão da primeira bomba atômica, em 6 de agosto de 1945, a vida em Hiroshima já estava alterada. Àquela altura da Segunda Guerra Mundial, a Itália de Mussolini e a Alemanha de Hitler estavam rendidas, e o Império japonês retraía-se, derrota após derrota, até voltar às suas fronteiras originais, encerradas no arquipélago nipônico. Em abril de 1942, em uma batalha mais simbólica que mortífera, o País havia sido bombardeado pelos Estados Unidos em sua Capital, Tóquio, e na cidade de Nagoya. Foi a primeira vez desde o início da Guerra, em 1937, que um país estrangeiro atingia seu território.

Já em 1945, Hiroshima, ao lado de Kyoto, era um dos únicos centros urbanos importantes do País que não haviam sido bombardeados. Kyoto, antiga capital e residência dos imperadores, desfrutava do status de cidade histórica. Hiroshima, embora ultrapasse os 350 anos de fundação, era um importante centro militar e de comunicações, estratégico na defesa. Até o dia 5 de agosto, véspera da hecatombe nuclear, seus habitantes não se perguntavam mais se iriam ser atacados e, sim, quando seria o ataque.

O formato da cidade de Hiroshima lembra um leque. O território urbano é atravessado pelo rio Ota, dividido em seis canais que cortam a cidade em ilhas. A despeito da proximidade da água trazer algum conforto quanto à necessidade futura de combater incêndios, a municipalidade acreditava na iminência de um bombardeio e passara a exigir demolição de construções, a intervalos determinados, para criar espaços vazios que pudessem conter o fogo. Muitos moradores da cidade, portanto, não só precisaram sair de suas casas para a residência de parentes ou amigos nas proximidades, como também foram obrigados, eles mesmos, a desmontar suas residências, tradicionalmente de madeira, e liberar o terreno.

Àquela época, as estudantes de escolas secundárias aptas a trabalhar foram tiradas de suas salas para auxiliar os então moradores a desobstruir estas áreas previamente sacrificadas ao fogo. Os bairros dividiam-se em pequenas associações, de 15 a 20 famílias, conhecidas como tonarigumi, responsáveis por armazenar mantimentos e orientar os moradores em caso de ataque. Cada família foi obrigada a construir, no terreno de sua propriedade, pelo menos um tanque de cimento para depositar água a ser usada no debacle contra o fogo. Nas montanhas dos arrabaldes, soldados instalados na Cidade abriam pequenos túneis que pudessem servir de abrigo aéreo.

Nenhuma das precauções, contudo, preparou Hiroshima para o que sobreveio. Em 1945, apesar de o átomo ser conhecido, a fissão atômica não era de conhecimento público - tampouco uma arma originada daí. Por outro lado, os aviões de ataque norte-americanos, os B-29, já eram conhecidos dos japoneses: seu som, suas formas e a devastação que deixavam como rastro. Também era recorrentes as passagens de aviões de reconhecimento ou de meteorologia dos Estados Unidos, e foram apenas estes dois últimos que Hiroshima aprendeu a divisar, ao soarem os alarmes aéreos, até aquele estágio da guerra.

Desde 1944, uma equipe aérea liderada pelo piloto Paul Tibbets era treinada nos Estados Unidos para o manuseio da bomba atômica. Eles não estavam informados sobre a nova arma, sobre a qual o presidente Roosevelt não falara nem sobre a seu vice, Harry Truman, que o substituiria após sua morte no ano seguinte. Foi Truman, já presidente, quem autorizou o ataque nuclear. Em 1945, a equipe de Tibbets já estava nas Ilhas Marianas do Norte - arquipélago dos Estados Unidos no Oceano Pacífico que servia de base para as Forças Armadas - e, no início de agosto, foi informada que iria decolar com a bomba tão logo as condições climáticas permitissem.

Em 5 de agosto, a missão foi confirmada. “Durante o seu período de treinamento, vocês foram ordenados a fazer muitas coisas estranhas", disse Tibbets para a equipe, segundo o Atomic Heritage Foundation, entidade responsável por preservar a memória do Projeto Manhattan, que construiu a bomba. “Havia uma razão para tudo isso, porque esta bomba que você vai usar não é uma bomba comum. Esta bomba tem a força de vinte mil toneladas de TNT”, explicou o piloto a seus companheiros.

Bomba silenciosa

Em homenagem à mãe, o piloto deu o nome de Enola Gay ao avião B-29 que devia conduzir. Às 2h04min do dia 6 de agosto, decolaram da ilha de Titian. Levavam consigo a Little Boy, como foi apelidada a primeira bomba atômica detonada na história. Tinha 3 metros de comprimento e pesava 4 toneladas. Seu material nuclear era composto de urânio. Durante seis horas voaram em direção ao Japão acompanhados de outros dois aviões de observação. Em Hiroshima, a cidade acordava há pouco quando soou o primeiro alarme aéreo do dia, por volta das seis horas. Tocou por um minuto, o que indicava apenas um pequeno grau de perigo.

Na época, segundo os moradores, o alarme tocava diariamente. A intensidade, o tempo de execução ou mesmo as variações indicavam o grau de ameaça. Após o toque das seis, retomaram as tarefas cotidianas. Às sete horas, um novo sinal foi emitido. Os radares japoneses haviam detectado apenas três aviões inimigos em direção às ilhas, típico das equipes de reconhecimento ou de meteorologia, e por volta das oito horas retirou o alerta. Às 8h15min, no horário do Japão, naquele mesmo 6 de agosto, as três aeronaves, a 9 mil metros de altitude, soltaram a Little Boy sobre Hiroshima. A 600 metros do solo, a bomba explodiu.

O que viria a seguir foi descrito detalhadamente pelo jornalista norte-americano John Hersey, autor do livro Hiroshima, uma das reportagens mais importantes da história do jornalismo. Hersey há anos cobria a Segunda Guerra Mundial e, em 1946, conversou com seis sobreviventes do ataque nuclear, quatro homens e duas mulheres. O relato escrito por Hersey e publicado pela revista The New Yorker, pela primeira vez, deixava a rigidez numérica da cobertura jornalística da época para dar nome, idade e sexo às vítimas. A tiragem inicial, de 300 mil cópias, foi vendida tão rapidamente que virou peça de colecionador. É desta obra que a reportagem a extrai alguns trechos dos relatos das próximas linhas.

Os programas de evacuação do Governo haviam reduzido a população local de 380 mil para 245 mil pessoas. Três quartos desse total viviam no centro de Hiroshima e nos 10 quilômetros quadrados conseguintes, onde estavam os principais bairros comerciais e residenciais. Justamente sobre este centro o explosivo atômico foi detonado. “Praticamente ninguém em Hiroshima se lembra de ter escutado qualquer barulho produzido pela bomba”, relata Hersey. Em comum, todos recordam um clarão branco. Um clarão branco e silencioso.

A viúva Hatsuyo Nakamura estava em casa com os três filhos quando viu o clarão. Estava a 1.215 metros da explosão. Hersey conta que a mulher “mal deu um passo, alguma coisa a levantou e a fez voar até o cômodo contíguo”. Quando ela aterrissou, “tábuas caíram a seu redor, e uma chuva de telhas a cobriu”. Os três filhos estavam soterrados nos escombros. O reverendo Kiyoshi Tanimoto, que no momento da detonação transportava alguns pertences para longe da Cidade, em busca de resguardá-los de um ataque, estava a três quilômetros do centro, no jardim da casa usada como depósito. Viu o clarão, deu três ou quatro passos e se lançou ao chão. “Com o rosto encostado na pedra, não viu o que aconteceu. Sentiu uma pressão repentina e estilhaços de madeira choveram sobre ele”, descreveu o jornalista norte-americano. A casa havia desabado.

Quando o reverendo subiu um pequeno morro para avistar a Cidade, encontrou a desolação. Uma torre de fumaça se ergueu sobre Hiroshima e as casas ao redor pegavam fogo. Gotas de água enormes caíram em seguida: uma mistura da turbulência causada pela poeira, a convecção, o calor e os fragmentos da fissão na atmosfera, que também deixaram o ar ionizado, lançando uma espécie de odor “elétrico”. A nuvem de detritos cobriu o céu. Os filhos da senhora Nakamura estavam vivos e, após retirá-los dos escombros, a mais nova, de cinco anos, perguntou à mãe: “Por que já é noite?”.

Os relatos acima foram colhidos por Hersey em duas viagens ao Japão, uma no seguinte ao ataque, em que passou mais de um mês com os entrevistados. A outra, quarenta anos depois, tinha como objetivo saber como e se viviam os hibakusha - palavra traduzida como “pessoa afetada pela bomba”. Procurou pelos seis entrevistados originais e suas famílias e completou a reportagem iniciada quatro décadas antes. Porém, quando esteve na cidade em 1946, Hiroshima ainda era uma ferida aberta.

A bomba devastou os dez quilômetros quadrados do centro de Hiroshima. Dos 245 mil habitantes da cidade, 100 mil perderam a vida entre a explosão e as horas seguintes. Hoje, fala-se em até 140 mil mortos em decorrência do ataque, acrescentando óbitos posteriores por efeito das sequelas. Ao fim da explosão, dos 150 médicos registrados na Cidade à época, 65 estavam mortos e o restante, feridos. Das 1780 enfermeiras, 1654 morreram ou ficaram feridas a ponto de incapacitar o trabalho. O hospital da Cruz Vermelha, o maior e mais moderno do local, ficou com apenas 6 médicos de 30 e 10 enfermeiras de 200.

Ainda assim, nos instantes seguintes, mais de 10 mil pessoas chegaram ao hospital com queimaduras causadas pela radiação térmica ou ferimentos diversos. No livro de John Hersey, o reverendo Tanimoto, que estava a três quilômetros do centro, correu para a cidade em busca da esposa e da filha. No caminho, encontrava fugitivos: “Alguns tinham as sobrancelhas queimadas e pedaços de pele soltos, pendendo das faces e das mãos. Outros, zonzos de dor, erguiam os braços como se carregassem alguma coisa com as duas mãos. Alguns vomitavam, sem parar de andar. Muitos estavam nus ou envoltos em farrapos”, narrou.

O médico Masakasu Fujii, um dos entrevistados do repórter norte-americano, perdeu todo o hospital no ataque. Localizado à beira de um dos braços do rio Ota, que corta a cidade, a clínica foi jogada para a água. Fujii foi lançado junto, ficou preso entre duas vigas, mas conseguiu deslizar para fora. Era o único médico do bairro, estava com o braço e costelas quebrados. Das suas seis enfermeiras, apenas duas sobreviveram. A casa dos pais de Fujii, localizada a 8 quilômetros de Hiroshima, não saiu ilesa: todas as janelas quebraram e o telhado desabara.

Dos 90 mil edifícios então registrados na prefeitura, 62 mil foram destruídos, outros 6 mil sofreram avarias que levaram à demolição. Os incêndios devoraram a urbe, mas, curiosamente, a maior parte não veio diretamente da bomba, e sim dos sistemas elétricos e cozinhas danificados. A convecção dos ventos criada pela detonação, nas horas seguintes, favoreceu o espraiamento das chamas. No centro da cidade, apenas cinco edifícios permaneceram de pé. Hoje, apenas um continua lá, a Cúpula Genbaku, com seu esqueleto de ferro retorcido, que integra o complexo do Memorial da Paz de Hiroshima.

Quase 12 horas após a explosão, um pequeno barco da Marinha Imperial japonesa singrou pelo rio para averiguar os estragos. Somente no dia seguinte o ataque foi noticiado pela imprensa via rádio, mais para o resto do País que para os de Hiroshima. Dizia o seguinte: "Hiroshima sofreu danos consideráveis, em função de um ataque de alguns B-29. Acredita-se que se utilizou um novo tipo de bomba. Investigam-se os detalhes”.

As equipes médicas que tratavam os feridos concluíram, à época, que havia três estágios de doença: uma reação direta à radiação, que destruía as células, e as queimaduras pelo calor; a seguir, os que não morreram de forma direta, dez ou quinze dias depois da bomba apresentavam queda de cabelo, febre e diarreia; por fim, quase um mês após o ataque, surgiam distúrbios como sangramentos, manchas, quedas nos glóbulos brancos. Muitos homens ficaram automaticamente estéreis, grávidas abortaram e mulheres pararam de menstruar. Nos anos seguintes, pesquisas apontaram a maior probabilidade de desenvolvimento de câncer nos sobreviventes, além de problemas de crescimento em seus descendentes.

A segunda bomba

Em 9 de agosto de 1945, a mais de 290 quilômetros de distância da primeira bomba, uma segunda bomba era lançada sobre o Japão. Chamava-se Fat Man, carregada pelo avião Bockscar, pilotado por Charles Sweeney. Era cerca de 70 centímetros menor que a Little Boy, no entanto, era mais pesada, mais potente e feita de plutônio. Foi detonada às 11h02min sobre a cidade de Nagasaka, a 550 metros de altitude. Dos 240 mil habitantes, 40 mil morreram instantaneamente, de acordo com arquivos da Universidade de Yale. Entre 25 e 60 mil ficaram feridos. Muitos atribuem o mortalidade menor sobre esta população pela geografia de Nagasaka, uma cidade montanhosa, cujos montes acabaram por absorver parte do impacto.

Em 15 de agosto, pela primeira vez na história do Império, os japoneses ouviram a voz do seu Imperador, Hirohito. “Depois de refletir profundamente sobre os rumos gerais do mundo e as condições vigentes hoje em nosso Império, decidimos lançar mão de uma medida extraordinária para resolver a situação atual”, disse o monarca durante o discurso. A transmissão representou um momento tamanho que é conhecida, no Japão, como Gyokuon-hoso, isto é, a Transmissão da Voz da Joia, em tradução literal.

A fala de Hirohito também representou um ponto de inflexão para os de Hiroshima. Em carta obtida por John Hersey, o reverendo Tanimoto escreveu a um amigo norte-americano: “No pós-guerra teve lugar a coisa mais maravilhosa da nossa história. Nosso imperador falou pelo rádio, dirigindo-se a nós, os japoneses comuns”, escreveu. Não são poucos os relatos dos afetados pela explosão que morriam cantando o hino nacional ou gritando “Tenno-heika, Banzai!”, ou seja, “Viva o Imperador”. 

Após a rendição japonesa, que marcou o fim da Segunda Guerra Mundial, começou a corrida pela arma que devastara Hiroshima. Em 1949, a União Soviética obteve a bomba. Em 1953, o Reino Unido a fabricou. Na década de 1960, China e França também. Atualmente, nove países possuem oficialmente o artefato nuclear. Mas a compreensão sobre a fissão nuclear demorou a ser explicada às suas principais vítimas. Quando os japoneses souberam que a devastação veio de um átomo, deram à arma o nome de genshi bakudan, algo como “bomba da criança primordial”.

Somente em 1954 o Parlamento japonês aprovou algum tipo de compensação aos hibakusa, os sobreviventes. Atualmente, segundo o Ministério da Saúde japonês, são mais de 130 mil, a maior parte com mais de 80 anos. Eram crianças ou estavam na barriga da mãe à época do ataque. Hoje, Hiroshima é uma cidade de mais de milhão de habitantes, um importante centro econômico conhecido pela vida noturna vibrante. No Memorial da Paz, no centro da cidade, um monumento aos mortos foi erguido. Lá, se inscreve uma frase especial para aos falecidos, mas dirigida também aos vivos: “Descansem em paz, pois o erro não se repetirá”.