Perigo anunciado: sujeira toma canais de Fortaleza às vésperas da quadra chuvosa
Moradores reclamam de transbordamentos, mau cheiro e acúmulo de animais transmissores de doenças; Prefeitura alega que limpeza dos canais é feita semanalmente mediante gravidadeA menos de dois meses do início da quadra chuvosa no Ceará, diversos canais à céu aberto em Fortaleza apresentam pontos com acúmulo de sujeira e resíduos sólidos. Entre os principais materiais encontrados estão sacolas e garrafas de plástico, embalagens de papelão e excesso de vegetação, como folhas ressecadas e aguapés.
O POVO visitou quatro canais a céu aberto em diferentes locais da Cidade, nos bairros Passaré, Barra do Ceará, Alto da Balança e Jardim América. Em todos os locais visitados, o grande problema relatado por moradores são os transbordamentos em épocas de chuvas.
É + que streaming. É arte, cultura e história.
Entre os reclamantes está Francisco da Silva, 58, proprietário de um comércio ao lado do canal do Jardim América. O comerciante conta que nos períodos de precipitações acentuadas, especialmente entre fevereiro e maio, o canal costuma transbordar e a água invade as edificações próximas, destruindo móveis, mercadorias e o que houver à frente.
“Esse ano entrou três vezes [água no mercantil]. Na época eu perdi umas dez sacas de ração, além de outras coisas. A gente vai recorrer a quem? Fica no prejuízo, fica calado, porque a gente não tem a quem reclamar”, conta.
O comerciante aponta que o descarte irregular feito por moradores é um dos fatores cruciais para a atual situação do canal, que apresenta sacolas de plástico e lixo doméstico em sua extensão.
Além deste, a ausência de uma limpeza mais profunda por parte do poder público também é citada como um dos causadores dos alagamentos que chegam junto à quadra chuvosa.
“Eles sempre limpam. Dessa última vez, antes da política [eleições] eles limparam, mas mal limpo. Tiraram só o mato, mas não tiraram a sujeira de dentro. Tem vezes que eles vêm limpando e tiram a sujeira de dentro”, relata Francisco.
Assim como no Jardim América, outro canal onde a população afirma sofrer com alagamentos é o do Lagamar, no bairro Alto da Balança. “Vizinhos” do escoadouro que optaram por não se identificar, descrevem a mesma luta nos meses de fevereiro a maio, quando as chuvas aumentam e a água invade as casas no entorno.
Junto com os transbordamentos, o acúmulo de insetos e roedores devido à sujeira também incomoda diversos moradores. Quem vive próximo ao canal do Lagamar reclama da presença de animais transmissores de doenças atraídos pelo lixo.
“Eu acredito que tudo de ruim, né? Traz rato, sujeira, lixo… porque é essa sujeira que tá aí. Faz tempo que não é limpo. Acho que foi limpo ano passado”, conta uma moradora que optou por não se identificar.
Em meio a todas essas dificuldades, há também o mau cheiro. Situado na Barra do Ceará, o canal que percorre a rua Belém de Figueiredo é um dos que pode-se notar o odor intenso logo na chegada.
Diferente das chuvas que assolam os moradores de outros bairros de forma sazonal, o mau cheiro ao lado do canal gera incômodos à vizinhança durante todo o ano. Neste caso a falta de limpeza regular também é apontada como um agravante para o eflúvio desagradável.
“É de veneta. Quando chega período de eleição e essas coisas assim o pessoal quer fazer uma coisa bonita para verem que aquele prefeito, aquele vereador, que seja qualquer um, fez a limpeza. Aí diz ‘eu fiz a limpeza, vote em mim’”, conta João Souza, 54, morador da rua Hermes Paraíba, que cruza o canal.
Canais transbordam durante primeira chuva da pré-estação
O dia 4 de dezembro marcou a primeira grande chuva da pré-estação chuvosa no Estado, que se inicia neste mês e vai até o final de janeiro. Os cerca de 111 milímetros (mm) que caíram sobre a Capital na data já foram suficientes para transbordar canais e alagar inúmeros pontos da cidade, entre eles, os canais da Barra do Ceará e do Jardim América.
Com o acúmulo de resíduos já aqui mostrado, os locais não suportaram o volume de água recebido e transbordaram. As imagens a seguir foram registradas na rua Belém de Figueiredo, onde fica o canal da Barra do Ceará.
Ao todo, 19 alagamentos foram registrados pela Defesa Civil durante as chuvas do dia 4. Além destes, outras nove ocorrências referentes a desabamentos parciais, riscos de desabamento e solicitações de lona foram atendidas.
Canais podem auxiliar da transmissão de doenças
Como citado pelas moradoras do bairro Alto da Balança, o acúmulo de animais transmissores de doenças como ratos, baratas e mosquitos é um dos principais temores de quem mora perto de canais a céu aberto. Isso se torna ainda mais nos meses iniciais do ano, que marcam também a temporada de arboviroses provenientes do Aedes Aegypti.
A doutora em Saúde Coletiva Caroline Mary, alerta para a possibilidade de sobrevivência do mosquito mesmo em águas poluídas, apesar de esse não ser o cenário ideal para sua reprodução. Essa abertura para a propagação, mesmo em escala menor frente ao que ocorre em fluidos limpos, torna a população vulnerável às doenças
“Já tem alguns trabalhos que mostram que o Aedes tem uma adaptação. Ele não se prolifera apenas na água limpa e parada como se pregava há muito tempo atrás. Ele já consegue sim se proliferar em qualquer coleção de água. Tendo matéria orgânica ali, a larva do mosquito também vai crescer”, pontua a docente do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Conforme publicado pelo O POVO no último outubro, a dengue tem vitimado mais pessoas do que a Covid-19 em 2024. Segundo dados dos paineis de monitoramento do Ministério da Saúde (MS) 5.900 pessoas faleceram no país por dengue até o início de dezembro e 5.700 por Covid-19.
Doenças intestinais também são um problema para quem reside às margens de canais a céu aberto, principalmente para as crianças, que costumam brincar próximo a esses locais e ter maior nível de contato com a água suja.
Durante as chuvas, este problema tende a ser agravado pelos alagamentos, como os observados no último dia 4 de dezembro, em Fortaleza. Consumidos por lixo e sem capacidade de escoar a água, os canais a céu aberto transbordam e levam o líquido contaminado para dentro das casas.
“Infelizmente quando começa, por exemplo, chuvas, essa água entra dentro das casas e a gente percebe um ciclo sazonal dessa doença. A gente tem uma quantidade muito grande de doenças diarreicas quando a gente tem o aumento das chuvas”, afirma Gurgel.
Manutenções são feitas ao longo do ano, diz Seger
O POVO procurou a Secretaria Municipal da Gestão Regional (Seger) para entender como é feita a limpeza dos canais de Fortaleza. De acordo com a pasta, o processo é realizado durante os doze meses do ano, começando com um mapeamento das prioridades da Capital em parceria com a Defesa Civil.
Esse trabalho é iniciado já em janeiro, quando são listados os canais que estão situados em áreas de risco, para alagamentos, por exemplo, e precisam de uma limpeza mais criteriosa.
Durante o primeiro semestre do ano, em especial no período de chuvas entre fevereiro e maio, canais que não estavam na lista de prioridades, mas chegaram a transbordar, também são destacados para limpeza profunda.
“No entorno desses canais são feitas sempre as limpezas das bocas de lobo, que dão acesso às águas das chuvas e que desentopem esses canais. Passam também pelos serviços de capina, varrição e limpeza do próprio canal, com a retirada de matéria orgânica ou de materiais inorgânicos, que são aqueles jogados pela população como garrafas plásticas, isopores e colchões velhos”, explica a coordenadora da limpeza pública de Fortaleza, Tereza de Paula.
O serviço começa logo após a reunião de janeiro, compreendendo quadra chuvosa e o período de estiagem. Os canais onde a Defesa Civil sinaliza a necessidade de limpeza podem receber uma ou mais limpeza por ano, a depender do quadro específico de cada escoadouro.
Assim como Francisco, do Jardim América, a Seger também cita a participação da comunidade como parte essencial na limpeza dos canais. Com limpeza na maioria das vezes anual, a pasta sinaliza que os canais só irão permanecer fora das condições de risco se forem cuidados pela população após a manutenção.
“Eles não se poluem e não ficam sujos pela ação natural. É sempre pela ação do homem, sempre pelo descarte incorreto de materiais, pelas sujeiras que são lançadas de maneira inadequadas nesses recursos”, complementa de Paula.
42% dos canais da Cidade passaram por limpeza este ano
Ainda de acordo com a Prefeitura, as limpezas são feitas em cronogramas que duram de 15 dias a um mês. Dentro dessas programações, mais de um canal podem ser limpos simultaneamente, a depender da complexidade dos casos.
Este ano, 63 dos 147 canais monitorados pela Seger receberam ações de limpeza entre os meses de janeiro e novembro. A expectativa é de que até o final do ano o canal do Lagamar, que já tem manutenção em curso, seja concluído.
A depender do tempo de conclusão deste serviço, um outro canal em condições de risco, que ainda não foi definido, poderá ser limpo.
Por fim, O POVO questionou a Seger sobre os apontamentos feitos por moradores de que as limpezas seriam feitas apenas no fim do ano. Em resposta, a pasta disse que as manutenções são feitas continuamente, e a depender do calendário, alguns canais podem sim receber limpezas nos meses de outubro, novembro e dezembro.
“Nós temos centenas de canais espalhados aqui pela cidade de Fortaleza e realizamos essas limpezas periódicas. Mensais e semanais. De repente aquele canal, dentro daquela comunidade específica, dentro daquele bairro específico naquela Regional, ele vai passar por uma limpeza mais próxima do fim do ano. Já naquela regional distinta a limpeza vai ser no início do ano. Depende da programação”, conclui de Paula.