Comunidade Saporé, no Mucuripe, enfrenta décadas de alagamentos e o medo de desaparecer
Moradores relatam piora nas inundações, enquanto esperam por reassentamento e soluções definitivas para a áreaA Comunidade Saporé, localizada às margens do Riacho Maceió, no bairro Mucuripe, Fortaleza, vive há anos uma luta pela sobrevivência. Historicamente afetada por alagamentos intensos no período chuvoso, a comunidade vê, ano após ano, seu território cada vez mais comprometido.
Das 200 famílias que habitam a área, cerca de 80% das casas, muitas delas palafitas e barracos, são impactadas pelas enchentes. Com poucos meses para o próximo período chuvoso, os moradores temem que o ciclo se repita.
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O Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) informou que, até o final de dezembro de 2024, vai ajuizar uma Ação Civil Pública para que a Prefeitura encerre a vulnerabilidade dos moradores da Comunidade Saporé. O objetivo é o reassentamento na própria área ou em locais próximos.
Desde 2020, obras de urbanização e drenagem têm sido realizadas ao longo do corpo d’água. Chamado de Parque Linear do Riacho Maceió, a área de mais de 97 mil metros quadrados está localizada entre a rua Tavares Coutinho e a av. Abolição, abrangendo os bairros Varjota, Meireles e Mucuripe. Conforme publicado pelo O POVO, a princípio, a obra deveria ser entregue em 18 meses, ou seja, em fevereiro de 2022.
Apenas no último dia 3 de outubro foi entregue a primeira etapa da urbanização do Riacho Maceió, entre a rua José Lino e av. Engenheiro Alberto Sá. De acordo com a Prefeitura, foram implantadas jardins biofiltrantes para limpeza da água e controle de enxurradas. A obra também inclui a recuperação do Riacho, com barreiras para resíduos sólidos, filtragem com vegetação natural e tratamento para pureza da água no deságue.
No entanto, conforme moradores ouvidos pelo O POVO, desde que foram iniciadas, as intervenções parecem ter agravado o problema das inundações.
Amanda Letícia, moradora nascida no Saporé e uma das líderes comunitárias, relembra a realidade antes das obras: "Antes, o Riacho conseguia escoar, mesmo quando chovia muito. A gente sofria, a água entrava na casa das pessoas que moravam na beira do riacho, mas não era tanto. Agora, com o assoreamento e os bancos de areia que se formaram, a água não tem para onde ir”.
De acordo com ela, na última década (2010-2020), apesar do aumento do nível do Riacho no período chuvoso, havia uma média de três casas alagadas. “Mas no ano retrasado, o nível do Riacho parece ter subido. A água passou a entrar em 16 casas. Esse ano subiu para 35. Nós temos medo que esse próximo ano seja ainda pior”.
A arquiteta e mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Juliana de Boni, explica que, naturalmente, o Riacho Maceió está situado em uma área de declive muito pequena.
“Normalmente, entre uma nascente e sua foz, há uma diferença de altura que permite uma queda gradual da água, desacelerando sua força. No caso do Riacho Maceió, essa diferença é de apenas três metros, o que é insuficiente para um escoamento eficiente", afirma a arquiteta.
O Riacho Maceió nasce através de galerias subterrâneas e emerge a partir do túnel do avenida Alberto Sá, finalizando na avenida Beira Mar. Sua foz, inclusive, recebeu em 2014 a construção do Parque Otacílio Teixeira Lima Neto, conhecido como Parque Bisão. A implementação inspiraria, futuramente ,a criação da atual obra do Parque Linear do Riacho Maceió.
"Em obras de recuperação de corpos d’água, o ideal é começar pelas nascentes. No caso do Riacho Maceió, as intervenções iniciaram pela foz. Com chuvas intensas e infraestrutura inadequada, o volume de água aumenta rapidamente, carregando poluentes que o riacho não consegue drenar. Sem ter para onde ir, a água extravasa o leito do riacho e invade as margens", explica.
Juliana de Boni aponta que a área da Saporé, próxima da foz, tem um declive ainda mais acentuado. Isso influencia diretamente nos alagamentos do local.
Também moradora da Comunidade, Andréia Cena foi uma das que foram impactadas pelas enchentes nos últimos anos. No período chuvoso de 2022, ela se viu na situação desesperadora de sua residência, de palafitas, ter sido quase totalmente destruída com a força do Rio.
“A gente não tinha nenhuma condição de ficar, parte das paredes e do chão caíram. Além disso, aqui passa muita fiação de energia, que ficaram completamente expostas à água. Eu sou mãe de três crianças, então não posso deixar elas aqui correndo perigo”, disse a moradora.
As moradoras da Saporé declaram que, atualmente, diversas casas que ficam próximas ao leito do Rio estão em estado de “congelamento”, instaurado pela Prefeitura de Fortaleza. “A Seinf veio e marcou nas casas esse sinal ‘PMF’, por ser de risco. Significa que a gente não pode fazer nenhum reparo nas casas, então não tem como a gente voltar pro que é nosso. Porque, sem os cuidados, a casa ficou pior muito pior desde que a gente saiu”, conta Andréia Cena.
Ela então se mudou com os filhos para uma casa alugada na mesma comunidade, ou seja, ainda muito próximo ao Riacho Maceió. A situação piorou quando, sem poder deixar as crianças sozinhas, teve que parar de trabalhar. Ela vendeu sua pipoqueira, principal fonte de renda com as vendas na Beira-Mar.
“Eu agora só consigo dinheiro com trabalhos avulsos. Só o aluguel da minha casa custa R$ 500, então a maior parte da renda é só pra isso. Não posso sair daqui, minha vida toda é aqui”, conta Andréia.
Lixo e mau cheiro
Uma outra questão apresentada pelas moradoras é a quantidade de lixo e mau cheiro, principalmente no período chuvoso, quando o nível do Riacho tende a subir. “Aqui é normal a gente ficar doente, mas no começo do ano acho que é pior, as crianças pegam muita micose também. Fora a quantidade de moscas”, conta Andreia Cena.
De acordo com Paulo Sousa, doutor em Oceanografia e professor do Instituto de Ciências do Mar (Labomar), da Universidade Federal do Ceará (UFC), quando uma ocupação ocorre perto das margens dos rios, as pessoas ficam mais vulneráveis a alagamentos.
“A especulação imobiliária expulsa as pessoas de áreas mais valorizadas, e elas acabam sem opções de moradia adequada, sendo forçadas a ocupar áreas de risco. Em algumas dessas áreas, nem é preciso uma chuva muito intensa para haver inundação, uma chuva comum já pode causar isso”, explica.
Além da água escura, provavelmente devido aos compostos poluentes, há muito lixo descartado nas margens do riacho. Na esquina da rua Dr. Alísio Mamede com a João Arruda, por exemplo, foi avistada quantidade de lixo doméstico que divide espaço, inclusive, com restos de móveis.
O professor Paulo Sousa destaca que a poluição é uma questão muito comum nos cursos de água de Fortaleza. “Os resíduos sólidos descartados de forma inadequada na cidade são levados pelas chuvas para as áreas mais baixas, incluindo os rios e os oceanos. O impacto é tanto ambiental, afetando o ecossistema, quanto na saúde pública”, destaca.
Uma luta que atravessa gerações
Para além da água que invade as casas, a comunidade ainda enfrenta o medo latente da possível retirada das famílias do local pelo Poder Público. Isso porque, a história de remoções na Comunidade Saporé é longa.
“De acordo com relatos dos moradores, já houve quatro remoções desde a década de 1970. Mas muitas daquelas pessoas são trabalhadores que precisam dessa proximidade da praia. São permissionários da Beira-Mar e também de pescadores”, comenta Diego di Paula, fundador do Acervo Mucuripe, projeto de pesquisa em história e memória comunitária do Grande Mucuripe.
Ele ressalta o triste contraste entre as áreas de risco e o crescente desenvolvimento urbano no bairro. Afinal, basta atravessar a av. da Abolição para chegar à área do Parque Bisão, rodeado de edifícios de luxo.
A moradora Amanda Letícia, apesar de ser criança na época, recorda de quando ocorreram as últimas remoções. “Foi por volta de 2001, por conta da proximidade com o riacho, alguns pessoas foram direcionadas para a região da Lagoa do Coração, na Praia do Futuro, inclusive a minha avó. Também foram enviadas famílias para a Messejana. Como ficou muito difícil para eles trazerem sustento para casa, muitos acabaram voltando”, conta.
Busca por soluções
Em 2023, a arquiteta Juliana de Boni e outros pesquisadores do Programa de Educação Tutorial de Arquitetura e Urbanismo da UFC (ArqPET-UFC) desenvolveram um plano de reassentamento para a comunidade, com base em diálogos com os moradores.
“Nós avaliamos que uma sugestão seria a realocação das famílias para um terreno próximo, de frente para o Parque, onde eles poderiam continuar suas atividades, como a pesca e o comércio de alimentos. Esse reassentamento deve englobar os proprietários, mas também as pessoas que pagam aluguel na área da Sapore”, disse a especialista.
Enquanto a comunidade espera soluções definitivas, as famílias tentam proteger suas casas das águas que avançam a cada nova chuva, construindo batentes e alicerces mais altos, e vivem na expectativa de que, algum dia, essa luta traga resultados.
Prefeitura afirma que obras não pioraram situação
Quando questionado sobre a eficácia das atuais obras de urbanização do Riacho Maceió, a Secretaria da Infraestrutura, por meio do titular Samuel Dias, destacou que as intervenções não pioraram a gravidade das enchentes.
“Ao liberar a calha, o fluxo de água melhora, diminuindo os remansos e o alagamento nas áreas ocupadas. Não é verdade que as obras agravariam a situação das enchentes. Pelo contrário, o objetivo é permitir que a água flua de forma mais eficiente”, disse o secretário
Conforme Samuel Dias, o principal objetivo das obras é proteger o canal principal por onde as águas dos riachos escoam de ocupações futuras, delimitando o espaço com um calçadão.
“As casas foram construídas em áreas onde o Rio naturalmente ocupa durante suas cheias. Então, quando a população continua a construir dentro do Rio, haverá sempre problemas de alagamento. A solução é devolver ao Rio as áreas ocupadas para que ele possa fluir normalmente”, declarou o secretário.
Ele explica que projeto prevê a retirada da comunidade das margens do riacho. Inicialmente, o plano era que as pessoas fossem indenizadas para que pudessem ser removidas.
“Mas houve intervenções por parte de entidades que defendem que elas devem ser realocadas para habitações populares, e não simplesmente indenizadas. Além disso, foi estipulado que essas habitações devem ser construídas na própria área, o que torna o processo ainda mais complexo e demorado”, declarou.
Esse reassentamento, segundo Samuel Dias, faz com que essa etapa do projeto esteja “atualmente obstaculada”. Ele aponta que a Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional (Habitafor) estaria trabalhando para conseguir financiamento para a construção das habitações e também está procurando um terreno na área.
Quanto à limpeza do Riacho Maceió, a principal ação seria a implantação de jardins filtrantes com vegetação que purifica a água contaminada e um sistema de gradeamento para reter resíduos sólidos na entrada do riacho, evitando que cheguem à praia.
Também está em andamento a obra de saneamento básico para tratar o esgoto despejado no Riacho. Segundo a Seinf, o Parque do Riacho Maceió está 78% concluído e deve ser finalizado até o final do ano, com um investimento total de R$ 41,5 milhões.
A promotora de Justiça Giovana de Melo Araújo, titular da 11ª Promotoria Cível de Fortaleza, especializada em Conflitos Fundiários e Defesa da Habitação, declarou que o Ministério Público do Ceará (MPCE) observa que o projeto do Riacho Maceió, apesar de ter um aspecto de melhoria ambiental, parece priorizar principalmente a área da Beira-Mar.
“Enquanto isso, a população do Saporé não poderá usufruir dos benefícios das melhorias ambientais na área, pois essas ações não são acompanhadas de soluções fundiária”, pontua a promotora.
Ela explica que, atualmente, o inquérito civil contra a Prefeitura está em fase de conclusão. "Já chegamos a um ponto em que não há mais diálogo possível com a administração pública. Precisamos responder de forma urgente, especialmente com a chegada do período chuvoso”, conclui Giovana de Melo Araújo.