Vagão que restou da antiga Estação Otávio Bonfim está abandonado

A estação foi ponto de chegada de retirantes da Seca de 1932. Vagão que restou seria transformado em uma biblioteca, mas projeto não foi para frente

"Pare, olhe, escute", diz uma placa em frente à antiga estação ferroviária Otávio Bonfim, localizada no bairro Farias Brito, em Fortaleza. Inaugurado em 1922, o ponto transportou retirantes que vinham do interior para a Capital. Hoje, o aviso parece em vão. Ninguém para, olha e escuta a estrutura, que praticamente passa batida por quem corta o cruzamento da avenida José Jatahy com a Bezerra de Menezes. Desde 2019, o único vagão que restou da estação está abandonado. Todo enferrujado, mais parece uma caçamba de lixo.

De acordo com Ana Isabel Reis, professora do departamento de História da Universidade Regional do Cariri (Urca), a estação fazia parte da primeira linha ferroviária do Ceará, a linha-tronco da Estrada de Ferro de Baturité, que começou a ser construída em 1872.

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Em um primeiro momento, a estação foi chamada de ‘Quilômetro 3’. Logo depois teve o nome alterado para ‘Matadouro’, por estar próximo ao Matadouro de Fortaleza. Só mais tarde recebeu o nome de ‘Otávio Bonfim’.

A estação conta parte da história do Estado. O local foi ponto de chegada de retirantes da Seca de 1932. "Quando os flagelados chegavam nas estações de trem, na Otávio Bonfim, por exemplo, [eles] eram encaminhados para campos de concentração, onde ficavam confinados", explica Kênia Rios, professora do departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Segundo a professora, existiram sete campos de concentração em Fortaleza, em 1932. Um desses locais, de acordo com ela, ficava às margens da estação. "Eram espaços cercados, ou murados, dependendo do lugar, que foram erguidos para abrigar os flagelados da seca. A propaganda [dizia] que eles teriam assistência médica, comida, alguma condição salubre de sobrevivência".

Os campos, no entanto, serviam como uma forma de barrar a dispersão de retirantes das áreas nobres da Capital. "Obviamente, esses espaços não comportavam o contingente de retirantes que chegavam de modo adequado, as pessoas já chegavam frágeis e famintas. [...] Era um número bem grande de pessoas que morriam nesses espaços. [Aconteciam] Estupros, todo tipo de violência, e não podiam sair".

A Otávio Bonfim chegou a ser citada no livro "O quinze", da escritora cearense Rachel de Queiroz, que descreveu o local como um curral “onde uma infinidade de gente se mexia, falando, gritando, acendendo fogo”.

Estação está abandonada e deteriorada

Hoje a estação está esquecida. Ela foi desativada em maio de 2009 e ficou inutilizada. Anos depois foi demolida. No local, restou apenas um único vagão. Em 2019, a Prefeitura citou que o compartimento seria transformado em uma biblioteca, mas o projeto nunca foi para frente.

Os moradores, irritados com os transtornos gerados pela deterioração do vagão, não se importam muito com o caráter histórico do espaço. Francisco de Assis Pinheiro, 66, mora no bairro Farias Brito desde 1972. Na época em que a estação funcionava, ele costumava viajar para o município de Senador Pompeu, a 265,8 km de Fortaleza.

Ele acredita que, por conta do estado de deterioração, a melhor opção é que o compartimento seja removido do local. Usuários de droga, de acordo com ele, entram dentro do vagão para fazer o uso de substâncias e ter relações sexuais.

Outras duas moradoras, que não quiseram se identificar, citam que a estrutura é “inútil”. Elas são mãe e filha e vivem na região desde a década de 1960 e, de vez em quando, usavam o transporte para ir até Maracanaú. Apesar da longa história do equipamento, elas também acreditam que a remoção é a melhor opção. “Tira que é melhor”, diz a filha.

Kênia entende que a questão da preservação da memória não é levada a sério em Fortaleza. "A gente vê a demolição de prédios importantíssimos para a Cidade. Acontece toda hora. É como se a memória não tivesse nenhuma importância. Nós não temos um centro histórico, tudo foi derrubado. Existe uma elite que o tempo inteiro destrói e constrói novidades. É uma Cidade que vive a serviço da novidade".

A professora destaca que a memória tem um papel político. Prédios que registram situações de violência, como o caso dos campos de concentração, servem de registro para lembrar o que já foi feito. “Não é só para dizer ‘Ah, era assim’. Tem um significado político de remeter às formas de relação que existiam e que ainda, em alguma medida, existem”.

O que será feito com o vagão?

A estrutura foi cedida pela Companhia Cearense de Transportes Metropolitanos (Metrofor) à Prefeitura de Fortaleza em 2018. 

A Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor) realizaria restauro e implantação de um projeto literário, mas conforme a pasta a iniciativa foi interrompida pela pandemia. Em nota, a Prefeitura informou atualmente estudar a recuperação e nova utilidade ao equipamento.

"A área do entorno do equipamento passa por manutenção de zeladoria constante. No início do mês de maio, a Secretaria Municipal da Gestão Regional (Seger) executou serviços de varrição e capina no local", completa. 

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