Em meio à PEC 45, Marcha da Maconha reúne multidão contra guerra às drogas em Fortaleza
Cerca de 2 mil pessoas marcharam na avenida Beira-Mar neste domingo, 26, com cartazes e dizeres da pauta antiproibicionista e luta contra a chamada PEC das DrogasDescriminalizar, cuidar e reparar: essas foram as palavras de ordem que ecoaram pela orla de Fortaleza na tarde deste domingo, 26, quando uma multidão de manifestantes caminhou pela avenida Beira-Mar na 16ª edição da Marcha da Maconha de Fortaleza, um ato que pretende informar o público e combater o preconceito e o moralismo que permeiam o debate sobre a descriminalização da cannabis no Brasil.
A concentração das cerca de 2 mil pessoas que marcharam este ano, de acordo com a organização, começou às 15 horas ao redor da estátua Iracema Guardiã e saiu às 16h20 em direção ao espigão da Praia do Náutico.
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O trânsito precisou ser paralisado em alguns trechos, mas a liberação aconteceu dentro de poucos minutos e nenhum transtorno foi registrado. Equipes de policiamento e da cavalaria estiveram nas imediações e acompanharam a movimentação, que foi pacífica do início ao fim.
Parte de um movimento que acontece por todo o País no “Maio Verde”, mês dedicado à luta antiproibicionista, a Marcha deste ano teve como um dos principais focos a oposição à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2023, conhecida como “PEC das Drogas”, que segue no Congresso Nacional.
Os manifestantes argumentam que, se aprovada, a proposta aumentará o número de pessoas presas, principalmente as pessoas negras e pobres, que já superlotam as cadeias vítimas da guerra às drogas; dificultará o acesso de quem precisa para uso medicinal; aumentará a estigmatização; diminuirá as condições de cuidar da saúde das pessoas que usam drogas; e ampliará a violência.
Para Tamara Silva, que é organizadora da Marcha da Maconha em Fortaleza e integrante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), a PEC também vem para mostrar “o caráter político da briga de força entre os poderes do Congresso e do STF. Enquanto o STF está com um processo sobre a descriminalização da maconha, o Congresso vem responder com a PEC 45. Mais uma vez nossa vida sendo rifada e tendo valor nenhum”.
De acordo com a manifestante, o proibicionismo tem raízes no racismo: “A gente vai ver que as pessoas que são encarceradas pela lei de drogas são as pessoas pretas e pobres. Também não é uma coincidência que os bairros mais pobres são também os bairros que mais têm pessoas negras. Isso é fruto de um sistema de escravatura que ainda é recente, porque estamos só 150 anos longe da abolição. Toda essa população foi jogada nos morros, nas favelas, nas periferias, e são elas também que são controladas pela lei de drogas, apesar de a gente saber que todo mundo faz uso, inclusive os ricos”.
Junto ao movimento da marcha, no sábado, 25, foi realizada a 3ª edição da Feira Cannábica do Ceará com música, artesanato, exposições e atividades promovidas por associações, tabacarias e growshops cearenses no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC) como uma forma de destacar e fortalecer empreendedores do setor.
O espaço também recebeu apresentações, batalha de rimas e uma oficina de reggae do projeto EducaReggae, iniciativa que busca disseminar a cultura preta na Cidade através da dança. Além disso, a feira realizou um mutirão de consultas grátis para terapia canabidoide.
Desde as primeiras edições, de acordo com Henrique Alencar, que é organizador da Marcha, um dos principais desafios é fazer com que as pessoas entendam a seriedade da questão.
“Para que parem de ver a gente como um grupo de jovens querendo fumar seu baseado e compreendam que o que a gente pauta é um problema social complexo e urgente”, aponta ele, que destaca como a Marcha da Maconha tem se posicionado e atuado dentro de espaços de institucionalidade como o Conselho Estadual de Política de Drogas para promover suas causas e influenciar políticas públicas.
O manifestante ressalta que o movimento entende “que a questão das drogas é uma questão de saúde pública, e não uma questão de polícia” e defende “o fortalecimento dos Centros de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (Caps AD) baseado em políticas de redução de danos e cuidado com a saúde dos usuários”.
Realizar o ato no principal cartão-postal da Cidade, a avenida Beira-Mar, segundo Henrique, “tem uma simbologia importante”: “Esse é um espaço normalmente ocupado pelas pessoas mais ricas, é um momento de trazer a periferia para ocupar esse espaço e gritar 'parem de nos matar'. Isso é muito importante porque a gente consegue aprofundar mais o debate, adentrar a complexidade da questão e mostrar o que é o movimento”.
“Só agradeço à maconha”, diz a arquiteta e urbanista Sônia Bayma, que mora em um dos edifícios da avenida Beira-Mar e desceu para se juntar à manifestação. Desde a pandemia de Covid-19 ela faz uso do óleo de canabidiol, também conhecido como óleo de CBD, que ajudou a aliviar sintomas de ansiedade e insônia desenvolvidos durante o contexto pandêmico.
“Essa é a terceira marcha que eu participo. Na primeira eu conheci um rapaz que é de uma associação e passei a utilizar o óleo para tratar os sintomas que eu tinha. Parecia que meu coração ia sair pela boca, eu não conseguia dormir. Fiquei muito feliz de encontrar esse medicamento, porque eu me dava muito ruim com outros que tomava. Espero que isso um dia seja divulgado pelo SUS, porque vai tirar muita gente de uma série de doenças. A questão do Alzheimer, da depressão, autismo. Não pode haver essa discriminação”, relata.
Iniciativas como a de Ana Carla Bastos, fundadora e coordenadora da Associação Medicinal do Ceará (AMECE), contribuem para a construção de uma nova narrativa sobre a cannabis no Estado.
“Eu comecei usando maconha pelo uso recreativo, que a gente chama de uso adulto, uso social. Com o passar da vida, fui entendendo que o uso que eu fazia era medicinal, me tornei paciente com prescrição e criei uma associação junto com amigos para acolher pessoas que precisam de tratamento e facilitar, democratizar o máximo possível o acesso ao remédio, que ainda é elitizado”, explica.
Carla avalia que a criminalização promovida pela PEC 45 é uma “grande hipocrisia”: “ninguém aqui está limpo, desde o usuário de café para acordar até a tiazinha que toma o remedinho para dormir é tão usuário de droga quanto o cara que faz uso do baseado (sic)”.
“E esse estado de criminalização do usuário também deixa a gente com um alerta, porque embora a gente seja paciente e tenha autorização para cultivar e fazer o uso desse remédio para ter uma associação, a gente tem os nossos cultivos invadidos pela polícia, sobrevoam drones da polícia, a gente tem um estigma mesmo possuindo uma regulamentação para o uso terapêutico. Então é uma pauta que não se difere da do usuário de drogas, a gente precisar estar mobilizado junto com a militância para que a gente tenha o fortalecimento da luta como um todo. O que a gente quer é a liberdade de uma planta”, pontua.
O advogado e pesquisador de políticas sobre drogas Ítalo Coelho, que viajará à Brasília para participar das discussões em torno da PEC 45, enfatiza que as mulheres têm sido cada vez mais afetadas pela criminalização da cannabis no Brasil.
“O sistema carcerário hoje é massivamente composto por pessoas presas por tráfico, 60% das mulheres que estão presas hoje são por esse crime. Grande parte delas estava com menos de 100 gramas e não fazia parte de organizações criminosas, eram usuárias, não traficantes. E eles querem piorar isso. Não tem Defensoria Pública que consiga dar conta dos processos, ninguém consegue arcar com a defesa”, indica.
Já a professora e pesquisadora Jaína Alcântara, que faz parte da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), complementa que mulheres são afetadas direta e indiretamente por esse cenário de violência: “mulheres também são a maioria das pessoas que visitam quem está encarcerado”.
Alcântara cita os mutirões de orientação jurídica realizados nos núcleos da Renfa em Fortaleza e no Cariri com advogados para auxiliar esse público que, conforme a pesquisadora, vive em condições extremamente vulneráveis e não enxerga caminhos para a garantia de direitos básicos.
“Nós tentamos prestar acolhimento, escuta, pensando na questão da renda a gente faz oficinas com essas mulheres. A gente entende que precisa se cuidar primeiro para dar conta do que é atuar politicamente, estar à frente de um movimento tão duro como esse, de enfrentamento às moralidades e a essa ilegalidade que a sociedade nos impõe de uma maneira injustificada”, acrescenta.