Com tons de feli(cidade), projeto colore ruas da Comunidade das Quadras
Rua da Felicidade, no coração da Aldeota, atravessa comunidade que contrasta com o resto do bairro nobre e carece de melhorias urbanas que integrem seus moradores à Cidade. Ação de projeto de arquitetura e urbanismo promove "acupuntura urbana" e dá novas cores ao espaçoOnde mora a felicidade? A resposta pode atribuir esse estado ou sentimento a origens diversas, mas na Comunidade das Quadras, em Fortaleza, moram pessoas felizes que atribuem essa sensação ao endereço propício: a Rua da Felicidade.
Nem sempre foi assim, porém. Até conseguir um Código de Endereçamento Postal (CEP), a hoje rebatizada de Comunidade São Vicente de Paulo em homenagem ao padroeiro da caridade Canonizado em 1737 pelo papa Clemente 12 (1652-1740), São Vicente de Paulo recebeu o título de patrono de todas as obras de caridade da Igreja Católica. É comum que seu nome esteja associado a inciativas como essa — a exemplo da Vila Vicentina da Estância, no bairro Dionísio Torres, vizinho da Aldeota. sobreviveu a remoções, estigmas de violência e outros problemas comuns às favelas na Capital.
É + que streaming. É arte, cultura e história.
No coração da Aldeota, as casas de alvenaria com tijolos expostos contrastam com o resto do bairro nobre e abrigam 3 mil membros de uma população vulnerável que, embora feliz com pouco, reconhece a necessidade de melhorias — entre elas, intervenções urbanas que integrem esses moradores à Cidade.
Foi a partir dessa demanda comunitária que as arquitetas e urbanistas Laura Rios e Liana Feingold, do curso de especialização em Arquitetura e Projeto Sustentável da Universidade de Fortaleza (Unifor), resolveram arregaçar as mangas e pôr mãos à obra.
“Quando a academia e a comunidade se encontram” foi o nome dado à ação de impacto realizada pelas equipes da pós-graduação em parceria com o Instituto Escolhi Amar e a Associação de Moradores da Comunidade São Vicente de Paulo, em um mutirão que teve início no sábado, dia 13 de abril, aniversário de Fortaleza, e seguiu até domingo, 14 — mas cujos efeitos devem se prolongar por muitas datas.
Como resultado dos dois dias de atividades, moradores e arquitetos fizeram intervenções nas duas entradas da rua principal, com lâmpadas, tendas e placas que sinalizam, além do nome do conjunto, o desejo estampado na frase “Bons ventos te tragam”.
Entre os grafiteiros convidados pelo grupo para colorir as ruas, os artistas visuais e muralistas Wesley Rocha, do Grande Bom Jardim, e Bheo, do Jardim das Oliveiras, que defendem a forma de expressão oriunda das periferias e contaram com o reforço de peso das crianças e demais moradores.
“O graffiti vem da periferia, então para a gente, que é artista urbano, a gente prioriza muito fazer essas intervenções dentro das comunidades, tanto para a ela ter acesso à arte quanto para que possa se expressar e contar a própria história, a história do território onde ela está inserida”, diz Rocha.
O que reforça Bheo: “A gente que vem de dentro de um contexto de comunidade, a gente sabe o quanto é importante o acesso à cultura e à arte. Eu comecei por diversão como essas crianças que estão aqui, então estou aqui para ajudar e contribuir com meus semelhantes nessas várias formas de um mesmo grito de expressão”.
Sentir, projetar, realizar e conectar
A iniciativa, que é parte do trabalho de conclusão de curso dos estudantes, se propôs a realizar um projeto urbanístico de integração, lazer e cultura no local por meio da instalação de pórticos, pinturas de piso e murais, e implementação de uma nova iluminação, conforme explicam as idealizadoras do ateliê Estar Urbano.
Ao longo de um ano, os alunos e as professoras se dedicaram a estudar e visitar a comunidade São Vicente de Paulo, com oficinas e rodas de conversa para captar as percepções, reais necessidades e desejos dos moradores locais a fim de construírem juntos soluções e melhorias de maneira coletiva.
“Aqui, todo mundo passa, mas ninguém entra. Ninguém sabe o que acontece, ninguém fica. E as pessoas consomem daqui, se você andar nessas ruas tem a feijoada, o caranguejo, a menina que pinta pano de prato. Por isso, a ideia é que eles consigam montar um calendário e fazer uma vez por mês uma feira que chame a Cidade, que entre por essa rua e que haja essa integração”, detalha Liana.
“Essa metodologia participativa passa por quatro etapas: sentir (o espaço), projetar, realizar e conectar. A gente começou a fase do conectar, mas ela se estende a medida em que a comunidade se conecta com as melhorias, com as intervenções que ela mesma projeta, em um nível infinito”, continua a arquiteta, que menciona a conquista como resultado do financiamento coletivo e de alguns patrocínios que forneceram os materiais para a ação.
O mutirão foi inspirado no conceito de “acupuntura urbana” O termo se refere a intervenções urbanas estrategicamente planejadas e implementadas em áreas específicas de uma cidade, com o objetivo de revitalizar, melhorar ou transformar esses espaços com potencial para produzirem um impacto transformador. , sinaliza a arquiteta Laura Rios. Assim como na acupuntura tradicional, onde pequenas agulhas são aplicadas em pontos específicos do corpo para tratar doenças ou promover o bem-estar, esse tipo de intervenção busca identificar pontos-chave na urbe que necessitam de atenção e intervenção.
“Imagina que a Cidade é um corpo. A acupuntura é a pontinha da agulha que faz um efeito que irradia pelo corpo inteiro, não é? O que a gente está fazendo aqui hoje é irradiando de um ponto, que na escala parece muito pequeno, mas o valor e o significado dele vai se expandindo para a vizinhança. E quando a gente junta várias ações, a gente tem um corpo tratado, que é a Cidade”, narra.
A urbanista analisa que “às vezes as coisas ficam muito agregadas, isoladas. A gente vê uma intenção na academia de resolver, de trazer soluções para a Cidade, a gente vê as comunidades com essa carência de soluções, com força de vontade, com presença, então se juntar todo mundo no mesmo propósito, com o Poder Público que também pode dar essa base, fica muito mais fácil”.
“Como é que a gente faz a formação de arquitetos em arquitetura sustentável sem falar de desigualdade social? Você conhecer de perto como é a dinâmica da Cidade, que tipo de tecnologias você pode trazer para isso, é fundamental. A gente acredita nessa formação de profissionais com essa percepção de que aqui nós estamos criando vínculos entre a comunidade que vão além da ação”, acrescenta.
Na perspectiva do arquiteto Diego Meneses, aluno da especialização, a iniciativa é um exemplo de como arquitetura e urbanismo também têm um papel social: “A gente não é só arquiteto, a gente também é urbanista. Às vezes parece que só existem projetos de luxo, e existem também, mas também existem projetos grandiosos como esse em que você realmente coloca a mão na massa e vê, na prática, uma coisa que vai trazer benefícios diretos para uma população carente”.
Já o arquiteto Matheus Albuquerque, também estudante do curso de pós-graduação, reforça as particularidades de atuar em uma comunidade que não está localizada na periferia fortalezense.
“Esse é um terreno que, por muito tempo, sofreu com a urbanização da área no entorno e que representa muita resistência. Trazer essas gentilezas urbanas e intervenções urbanísticas para as ruas que cortam essa comunidade é uma forma de convidar as pessoas que não são dela para entrar e conhecer um pouco mais da vida que existe aqui dentro. O que pode parecer só pintura e arte é o pontapé inicial para o que a gente quer alcançar, que é agregar a comunidade ao restante da Cidade”, finaliza.
Missão de hoje: transformar a favela
“Nossa comunidade é muito bem representada na área empreendedora, então nós temos tudo o que tem no Centro da Cidade e tudo o que tem em outros lugares: tem o rapaz que entrega água, o rapaz do frango, do peixe, a mulher do açaí, a mulher do pastel, a do pratinho, a que vende roupa, a costureira, a que faz bolo e salgado para aniversário. Então as pessoas ao redor compram da comunidade, mas não entram. Elas têm receio de entrar”.
As palavras são de Cristian Silva, 30, mais conhecido pela comunidade como Kiko, presidente da Associação de Moradores da Comunidade São Vicente de Paulo e do Instituto Escolhi Amar. A frase na camisa do empreendedor entrega: “Missão de hoje: transformar a favela”.
Nascido e criado nas Quadras, ele conta que “muito jovem” sentiu a necessidade de assumir a gestão das entidades e tomar para si a responsabilidade de conduzir iniciativas que provocassem mudanças positivas dentro do território.
“Até que fui escolhido para representar todo esse povo. São mais de 444 casas, 650 famílias e pelo menos 3 mil moradores. E esse número provavelmente mudou, porque esses são do levantamento que nós fizemos na pandemia para as ações emergenciais. Já são 4 anos em que já mudou, já cresceu (a comunidade)”, retrata.
“E a gente já chegou impactando, a gente transformou esse lugar de uma forma nunca antes vista. Aqui nós não tínhamos creche para atender às crianças da comunidade, que são muitas; a situação desse prédio da associação era terrível, nós conseguimos reformar e trouxemos várias atividades aqui pra dentro, como essa que está acontecendo hoje, mas muitas outras também”, acrescenta.
Entre as ações citadas pelo líder comunitário estão a entrega de frutas, verduras e legumes pelo programa Mais Nutrição e a distribuição de 100 alimentações prontas diariamente para moradores em situação de extrema pobreza.
Além disso, a associação oferece cursos e oficinas como os de manutenção e conserto de celulares, futsal, basquete, capoeira e crochê e bordado realizados no mês de março, de acordo com Kiko.
Depois de exibir, orgulhoso, a Taça das Favelas 2023 conquistada pela equipe da comunidade, Kiko levou a equipe de reportagem do O POVO para conhecer a rádio comunitária da Comunidade das Quadras, “uma das poucas que ainda existem em Fortaleza”.
“A rádio é uma das principais conquistas que nós temos, porque foi através dela que a gente conseguiu atingir os moradores. É comum ver o seu Francisco, de 77 anos, que é o comunicador que cuida há mais de 30 anos desse trabalho, arrecadar dinheiro para funerais de alguém que faleceu e a família não tem condições de arcar, por exemplo”, cita.
“Não é esse muro enorme do Colégio Santa Cecília, que fica aqui de frente pra gente, que vai nos abater. Afinal, a ideia é construir junto com eles essa ponte de mudança, essa ponte de avanço por mais educação, arte e lazer para as pessoas da comunidade. Falam muito da questão da segurança, mas a gente só vai conseguir talvez mudar alguma coisa nisso se começar a impactar a vida das pessoas. Eu preciso impactar a vida dessas crianças, desses jovens, dessas famílias, para trazer algum resultado”, pontua.
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