Da dor ao amor: famílias iluminam praça Luíza Távora e lançam luz sobre perda gestacional
No Dia Internacional da Conscientização e Sensibilização da Perda Gestacional, Neonatal e Infantil, 15 de outubro, pais, familiares, amigos e apoiadores do chamado ‘Outubro Azul e Rosa’ acenderam velas para homenagear bebês e crianças que partiram precocemente
11:40 | Out. 16, 2023
Maria Luz, Bento, Otávio, Beatriz, Maria Clara, Sofia, Miguel, July, Maria Júlia, Martín, Samuel, Mariana, José Ricardo, Mateus: em memória desses e de outros filhos e filhas que partiram precocemente, famílias que atravessam a perda gestacional, neonatal e infantil em Fortaleza iluminaram a praça Luíza Távora na noite desse domingo, 15, com uma “Onda de Luz” que manteve acesa a homenagem àqueles que, fisicamente, não estão mais aqui.
Com fotografias, brinquedos, pelúcias e objetos que simbolizam os bebês e as crianças que tiveram uma breve vida, pais, familiares, amigos e apoiadores do chamado ‘Outubro Azul e Rosa’ acenderam velas em uma corrente que é feita todos os anos e vai da dor ao amor para lembrar o quanto essas vidas foram e são importantes.
Embora seja mais conhecido por campanhas como o Outubro Rosa, de prevenção ao câncer de mama, ou por datas comemorativas como Dia das Crianças, Dia dos Professores e Halloween, outubro também é o mês internacional da conscientização e sensibilização pelas perdas gestacionais, neonatais e infantis — quando, no dia 15, a “Wave of Light” se espalha pelo mundo para lançar luz sobre essa temática.
É o que explica o publicitário Lucas Ramalho, que criou o grupo de apoio e acolhimento ‘Da dor ao amor’ junto com a esposa, Tatiana Viana, depois que o casal perdeu a filha Beatriz no nono mês de gestação.
“A gente participa desse movimento internacional anualmente desde 2019, e é muito especial porque você acaba conhecendo outras pessoas que também estão passando por isso. E tem dias que são mais difíceis, algumas datas são duras de atravessar, às vezes surgem dúvidas, busca por especialistas, então é o acolhimento através da partilha, do abraço, do choro, do ‘sinto muito’”, descreve.
“Quanto mais a gente puder trazer esse tema para discussão e sensibilização, melhor, até para que a gente consiga chegar em outros temas como a forma como as pessoas são tratadas nos ambientes hospitalares, a questão da violência obstétrica, erros. A gente pode ter protocolos que evitem dores que são evitáveis nesse momento em que a dor de perder um filho já é tão forte”, continua.
Vestidos com camisas que carregavam a frase “Enquanto eu respirar, vou lembrar de você”, Lucas, Tatiana e outros casais enlutados falaram sobre “dores e amores” que compartilham mensalmente nas organizadas pelo grupo, que tem mais de 60 participantes.
“A gente brinca que está fazendo a reunião de pais enquanto eles estão na creche, lá no céu. É um espaço de escuta, porque há muita demanda reprimida para falar. Você deixa de falar disso porque as pessoas têm dificuldade de elaborar sobre a morte, às vezes até dentro da própria família. Cada um elabora o luto de uma forma, mas em alguns casos as pessoas não têm abertura nem com o cônjuge”, destaca o publicitário.
“Para cada família é diferente, nenhum filho é igual ao outro, não tem nenhuma história igual, as dores não são iguais, mas ainda assim nós estamos ligados por um laço de empatia, e, em alguns momentos, a gente consegue identificar similaridades que ajudam a entender melhor, a lidar melhor”, relata.
Para Ramalho, “ter esse local de acolhimento aos sentimentos é muito importante, porque há tristeza, raiva, revolta, mas também felicidade e amor.”
"Mães de anjos" precisam lidar com luto ‘invisível’ para a sociedade
O resultado positivo do teste de gravidez marca o começo de uma nova vida, com expectativas e planos, mas a felicidade da chegada acaba abruptamente substituída pela tristeza da partida prematura.
Diante de uma dor que não é reconhecida socialmente, as mulheres que passam pelo luto perinatal (quando ocorre o aborto, morte do bebê ainda na barriga ou recém-nascido), apelidadas de “mães de anjo”, lutam para que esse sofrimento seja legitimado e dão as mãos em uma rede de proteção, respeito e cuidado.
A secretária Sheila Takaki, que perdeu o pequeno Otávio, de dez meses, em virtude de complicações de uma cardiopatia complexa, conta que descobriu o coletivo ‘Da dor ao amor’ através de uma colega de trabalho que também havia perdido o bebê por uma doença no coração.
“Ela me indicou, mas era no início da minha perda, que foi em novembro de 2021. Não tive coragem de participar porque ainda estava recente e sempre que falava eu chorava muito. Minha primeira participação foi em outubro do ano passado, na Onda de Luz da praça em 2022”, narra.
Sheila expõe que começou a participar dos encontros e foi muito bom compartilhar com quem está passando pela mesma coisa. "Os sentimentos são muito parecidos, são coisas que vão mudando. No início você não consegue ver criança, falar com criança, depois muda. Com o tempo a gente vai ressignificando, vai encontrando uma maneira de sobreviver a isso.”
“Fiz um livrinho depois de seis meses da partida dele, e foi como uma terapia que fiz junto com o acompanhamento psicoterápico. Eu queria muito contar a história dele, porque o que a gente quer é que ele seja lembrado. A terapia me ajudou bastante, porque eu não queria mais sair de casa, tinha medo de vir algum flash, eu lembrar dele e querer voltar, ficar na minha cama”, lembra Sheila Takaki.
Emocionada, ela declara: “Eu li um livro que falava sobre como a mãe consegue suportar uma dor como essa e vi que muitas logo conseguiam ter outro filho, e isso ajudava elas. Mas eu não tive e nem tenho, então me perguntava como eu ia aguentar. E foi o próprio Otávio quem me ajudou.”
Emoção que marca também a assistente social Juliana Monteiro, uma das organizadoras do evento na praça. Ela passou por duas perdas: a de Maria Luz, com cinco meses de gestação, e a de Bento, no sétimo mês de gravidez — e em ambas foi submetida a dores que tornaram o momento ainda mais difícil.
“As pessoas, os profissionais e a sociedade estão preparados para a vida. A partir do momento em que o prognóstico é outro, há um certo distanciamento”, assevera.
“No parto dela fui para a emergência, tive de passar por vários desconhecidos, sem um profissional da minha confiança. Passei pela indução do parto normal, pela curetagem, pedi muito para ver, segurá-la, queria me despedir, mas não consegui. Essa é uma das minhas piores dores, não saber para onde ela foi. Minha filha foi para o lixo hospitalar? Isso até hoje mexe comigo”, desabafa.
Juliana recorda que ficou no mesmo andar em que estavam bebês recém-nascidos e escutou o choro deles a noite inteira: “Hoje a minha luta é para que outras mães não sintam essa dor”.
Na gestação de Bento, a assistente social expressa que tentou levar uma gravidez “normal” embora tivesse descoberto no mesmo exame feito em Maria Luz que o bebê possuía a mesma condição: transluscência aumentada.
“Tive de passar por uma cesárea de emergência e pude ver meu filho, não da forma que gostaria, mas pelo menos consegui me despedir dele. Consegui fazer o sepultamento e de uma forma simbólica sepultei também a Maria Luz. Pela idade gestacional dele também consegui tirar a licença-maternidade, que inicialmente não via importância, mas depois percebi que foi essencial porque consegui viver o luto dele e dela, que até então não tinha conseguido”, explana.
A forma de ressignificar isso ela conta que conseguiu no grupo, se doando para outras mães que também sofreram essa perda, lutando pela causa. "Nós temos uma colega que completou um mês hoje da perda da filha, estava com 40 semanas e não conseguiu a licença-maternidade, que é um direito,e o trabalho dela está negando”, reclama.
De acordo com a mãe de Bento e Maria Luz, a mobilização também procura sensibilizar profissionais de saúde e a sociedade para que saibam como realizar o acolhimento de uma forma que não traga mais dor para essas famílias: “Panfletando aqui na praça eu vi que muita gente não conhecia o movimento, às vezes até os profissionais da saúde que deveriam conhecer não conhecem. Reconheçam essa dor, esse luto, essa maternidade e essa paternidade”.
"Outubro Azul e Rosa" também visa sensibilizar profissionais de saúde e fomentar diretrizes para melhor assistência ao luto
Foi enquanto pesquisava sobre o itinerário das gestantes e a demora no atendimento obstétrico até o óbito fetal que a psicóloga perinatal Marley Carvalho percebeu a necessidade de acolhimento dessas mulheres.
“A maternidade combina muito com vida, alegria, e elas estão passando, desde o momento do diagnóstico até as intervenções que vêm logo após, com exames, o parto e o puerpério, por sucessivas dores”, aponta.
Voluntária da ONG Amada Helena, que acolhe pais enlutados e fomenta a discussão do luto parental, ela também comenta que grande parte dessas mães engravida novamente em menos de um ano da perda.
Número de óbitos fetais no Ceará por ano (2020-2023)
Por isso, ressalta a psicóloga, “quanto mais qualidade tiver nosso cuidado, melhor elaborado será o luto e menores as chances de ele se tornar patológico, com desenvolvimento de doenças como a depressão, por exemplo”.
“Quem passa por algo do tipo precisa ser reconhecido, abraçado, acolhido, porque essa dor se intensifica quando ela não tem espaço ou validação”, acrescenta.
Carvalho, que atualmente é coordenadora técnica do Comitê Estadual de Prevenção da Mortalidade materna, infantil e fetal da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), destaca que a pasta tem trabalhado para estabelecer protocolos, diretrizes e políticas “que façam um link com essas histórias e retornem em forma de mudança para elas, humanizando o trabalho dos profissionais de saúde para dar uma melhor assistência durante a perda que essas famílias enfrentam”.
Número de óbitos infantis no Ceará por faixa etária (2020-2023)
“Os próprios pais e mães que participam do grupo de apoio têm ajudado na elaboração de diretrizes para assegurar um atendimento mais humanizado. Que a gente possa oferecer privacidade, permitir o ritual de despedida, respeitar a subjetividade e o significado desse filho para cada um”, indica.
"O luto perinatal, costuma-se dizer que é insólito, porque em muitos casos não se vê o bebê e não se reconhece que é uma perda como qualquer outra ali, mas há uma dor que é inerente à perda de um filho e independe da idade dele”, finaliza.
Comitê Estadual de Prevenção do Óbito Materno, Infantil e Fetal
Para consolidar o acompanhamento permanente da temática, a Sesa instituiu o Comitê Estadual de Prevenção do Óbito Materno, Infantil e Fetal, que contribui com o monitoramento das etapas do processo de vigilância desses óbitos nas Regiões de Saúde do Ceará bem como com a avaliação das políticas de saúde materna e infantil.
O Comitê é o responsável, anualmente, por organizar a Semana Estadual de Conscientização pelas Perdas Gestacional, Neonatal e Infantil, entre 15 e 21 de outubro.
Para além das estatísticas, a iniciativa visa conscientizar a sociedade para voltar a atenção ao acolhimento de mães e pais que vivem a dor da perda gestacional e neonatal. A prestação de cuidados a essas famílias é de vital importância para evitar resultados negativos a curto e longo prazo.
Conforme a pasta, cerca de 20% das gestações clinicamente diagnosticadas evoluem para interrupção espontânea e não estão associadas somente à morbidade física ou alta mortalidade, mas com repercussões sociais e psicológicas importantes à família.
Confira galeria de fotos do encontro no dia 15 de outubro na praça Luiza Távora: