Separados pela seca dos anos 70, irmãos cearenses se reencontram após meio século

Intenção, agora, é reunir recursos para que Dimas da Silva consiga vir a Fortaleza abraçar os irmãos que não vê desde que foi para o Pará fugindo da seca

20:36 | Out. 01, 2023

Por: Jáder Santana
José Maria (à esquerda) e Dimas, irmãos que se reencontram virtualmente após 50 anos (foto: Acervo familiar)

Na última vez que falou com seus irmãos, Dimas da Silva Guerra era um jovem de 20 anos. Vivendo no coração da floresta Amazônica no início da década de 1970, trabalhava como podia para mandar dinheiro para ajudar a família que havia deixado no Ceará, fugindo de uma seca que forçou a migração de 11% da população do Estado.

Esse reencontro está prestes a acontecer graças aos esforços de Brena Guerra, filha de José Maria, um dos irmãos que Dimas deixou no Ceará. Depois de mais de dez anos procurando o tio nas redes sociais, Brena e um primo o encontraram há duas semanas. Em segredo, promoveram uma chamada de vídeo entre Dimas, José Maria e outras duas irmãs, Teresa e Celina.

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"Eu cheguei pro meu pai e falei: olha, tem uma promessa que eu sempre te disse que ia cumprir, e chegou a hora. Eu consegui localizar seu irmão", conta Brena em entrevista ao O POVO. José Maria, com 59 anos, "tremendo e chorando muito", viu na tela do celular, direto do município paraense de Oriximiná, seu irmão Dimas, hoje com 70 anos.

"A primeira conversa foi comprida, fomos falar de nossa vida, da infância, da família", conta José Maria ao O POVO, emocionado, antes de relembrar as situações que geraram o afastamento e a perda de contato.

Separar para sobreviver

Dimas era o filho mais velho do casal que teve 18 crianças em um pedaço de chão do município de Aracati, distante 150 km da capital cearense. A família vivia em situação precária, e os filhos, desde cedo, além de trabalhar no pequeno roçado do terreno, eram "emprestados" para outros serviços nas casas mais abastadas.

Na virada entre as décadas de 1960 e 1970, os efeitos de uma prolongada seca agravaram a situação da família. "As lagoas secaram, os peixes acabaram, e a gente começou a passar muita fome, ficamos trabalhando em troca de um pouco de farinha", relembra José Maria.

A escassez extrema acabou vitimando vários dos filhos do casal, e José Maria, entre lágrimas, narra uma situação: "Um dia cheguei para balançar a rede de minha irmãzinha de dois anos, uma rede feita com sacos de açúcar, amarrada com duas cordinhas. Quando fui dar um abraço nela, percebi que ela estava dura. Minha mãe viu e disse: sua irmã morreu. E eu, inocentemente, perguntei de quê. E ela só dizia: de fome, morreu de fome".

José Maria continua: "A gente só tinha angu d'água pra dar pra ela. E às vezes alguma rolinha que eu matava. Ela morreu de desnutrida, de desarranjo. Eu lembro do meu pai indo enterrar ela dentro de uma caixinha de papelão".

Frente à situação, os pais de José Maria tiveram que "dar os filhos, espalhar pra um canto e pra outro". Ele, aos 12 anos, foi mandado para o interior do Estado, para a casa de uma tia. Dimas, a essa altura, já estava no Pará, de onde mandava, quando podia, dinheiro para os pais. Ele havia saído de casa, com rumo ao Norte, aos 16 anos.

"Mas aí a gente se apartou, foi cada um pra um lado, meus pais vieram pra Fortaleza, e perdemos contato com o Dimas", relembra. José Maria e Dimas, que nunca aprenderam a ler, separaram-se definitivamente, em um desligamento que se transformou em ausência de meia década.

Tentativas de reencontro

Quando finalmente conseguiu chegar a Fortaleza, onde formou família e encontrou emprego, José Maria começou a ouvir dos pais que era sua tarefa reencontrar o irmão. "A gente não tinha esperança, e uma coisa que me dá muita dor é lembrar de minha mãe dizendo que sabia que ia morrer sem ver o filho, e que ia me deixar com essa responsabilidade", conta. Seus pais, de fato, morreram sem notícias do filho.

Em meados dos anos 2000, José Maria chegou a juntar dinheiro suficiente para comprar uma passagem de ida e volta a Belém: "Eu tinha medo, mas fui sozinho pelo meio do mundo, fui bater no Pará. E aí fui em duas emissoras de rádio, mas eu não tinha foto dele nem nada, só o nome. Diziam que era difícil, me pediram pra ficar mais uns dias. Mas eu só tinha ido com o dinheiro das passagens, então fiquei uns dias no terminal e voltei pra casa".

Frustrado e sem dinheiro, José Maria compartilhou com os filhos o propósito de localizar o irmão perdido. E foi Brenda que tomou para si aquele sonho. "Ele me dizia que queria muito encontrar o Dimas e que quando eu crescesse, se eu me interessasse, podia ajudar", conta ela.

Aos 18 anos, Brena (que hoje tem 29), comprou um celular com acesso à internet e intensificou as buscas que, até então, fazia em computadores de uma lan house. "Eu dizia a ele que um dia encontraria meu tio. Eu dava minha palavra, mas no fundo eu tinha medo de que isso nunca acontecesse", relembra.

A ausência de fotografias e documentos (muitos dos irmãos de José Maria só foram registrados depois de adultos) dificultava o trabalho de Brena. E foi só em 2023 que ela decidiu pedir ajuda a um primo que vive e trabalha em Aracati. Munidos da data de nascimento de Dimas, que o primo havia obtido em um cartório, intensificaram a busca virtual.

Um final feliz

"Começamos a entrar em vários grupos de pessoas desaparecidas no Facebook. Em um deles, encontramos a informação de um Dimas que procurava a família há mais de 50 anos. Então, comecei a mandar mensagem pra todo mundo com o sobrenome 'Guerra' no perfil dele", narra Brena.

A filha de José Maria acabou conseguindo falar com a pessoa que tinha feito a postagem, e com ele conseguiu a cópia do CPF de Dimas. "Com o nome completo, a data de nascimento e o número do CPF, descobri no Cartório Eleitoral que os pais dele eram meus avós. E aí comecei a gritar de felicidade", relembra.

Para anular todas as dúvidas, Brena primeiro conversou com Dimas: "Eu tinha algumas perguntas que só quem era da família saberia. E o Dimas sabia que meu pai tinha sofrido um acidente na infância e que tinha cicatrizes nos dois braços. Então eu disse: o senhor é meu tio".

Depois da reunião inicial entre os irmãos, falar ao telefone tornou-se hábito diário entre eles. "Todo dia eles conversam. De manhã, o Dimas fala com a Teresa. De tarde, com a Celina. E de noite, quando meu pai chega do trabalho, eles conversam. É algo muito mágico. São 50 anos de conversas atrasadas", conta.

A um voo de distância

Apesar da resistência de seu pai, Brena iniciou, em seu Instagram, uma campanha para arrecadar fundos para a compra de passagens aéreas. A ideia é que Dimas possa viajar até Fortaleza, acompanhado de sua esposa, para encontrar os irmãos que não vê há tanto tempo e os sobrinhos que não conhece.

José Maria, que tem uma oficina de consertos de geladeiras, fogões e ventiladores no Bom Jardim, desconfia de tudo o que vem pela Internet e afirma: "Ainda não voei pra lá porque não pude, porque agora não tenho condições. Mas se eu pudesse, já teria feito uma balsa, tinha me jogado mar e saia deixando o tempo me levar, entrando pelas beiras dos rios. É meu sonho, e acredito que Deus vai me ajudar".

Enquanto os sonhos de navegação de José Maria não se concretizam, Brena vem divulgando em suas contas das redes sociais pedidos de ajuda para poupar o pai de uma aventura tão fatigante. José Maria e a filha sonham com um Natal em família — uma família que, de repente, se viu multiplicada.

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