"Da favela para a favela": na Praia da Leste, baile exalta potências periféricas
‘Sambaile’, festa na barraca de praia Foi Sol, mistura diferentes linguagens, identidades e sons no litoral leste de Fortaleza para vibrar com as potencialidades da periferia da Capital — da cultura à economia, da música à moda
14:16 | Set. 24, 2023
Algo que deu certo, “foi sal”: foi em referência a essa gíria oriunda das periferias de Fortaleza que surgiu, entre as areias do litoral oeste da Capital, a barraca de praia Foi Sol — lugar que recebeu, neste sábado, 23, a segunda edição do ‘Sambaile’, uma festa “da favela para a favela” em frente ao mar que banha uma parte da cidade onde está o Grande Pirambu, .
Com o cenário da Praia da Leste, o público, composto principalmente por pessoas periféricas, negras e LGBTQIAP+, assistiu ao entardecer acompanhado de gêneros musicais diversos que passearam do samba ao reggae.
“O Sambaile vem na perspectiva de fazer produção cultural periférica de alta qualidade, por nós e para nós”, destaca Isabella Souza, a DJ Preta Belzinha, uma das atrações convidadas para comandar as pick-ups.
“Ele [o evento] é resultado de muitas mãos, acontece num pólo gastronômico e cultural que atua aqui nessa região do Pirambu, um lugar que sofre com muitas questões, entre elas o ”, aponta.
“É uma galera de várias partes de Fortaleza, eu por exemplo sou do Barroso, que vem disputar a produção cultural da cidade, descentralizar essa produção dos centros tradicionais de cultura e fazer aqui. Ocupar o nosso espaço”, acrescenta.
A DJ pontua: “Quando a gente resolve fazer a cultura gerada por nós no nosso território de periferia, a gente diz que, sim, nós somos capazes e sabemos fazer cultura de alta qualidade, uma cultura representativa e que realmente tem a ver com o nosso dia a dia. Porque são nossos rostos, nossos corpos, nossas marcas e nosso trabalho que estão aqui”.
Além das atrações musicais, o evento também abriu espaço para o empreendedorismo local por meio da “Feirinha Sambaile”, que viabiliza a exposição de produtos e geração de renda para negócios pequenos e independentes de pessoas pretas, faveladas e LGBTQIAP+.
Nesta edição, a parceria realizada com o intuito de fortalecer a economia criativa recebeu estandes das marcas autorais Huststreet, CearAfro, Use Mansa Musa e Ari Art com tecido.
Para a empreendedora Ariadne Oliveira, que trabalha com bolsas, roupas e acessórios exclusivos feitos com tecidos africanos, a feira “é mais uma oportunidade de levar o trabalho para o público e mostrar a beleza de acessórios que simbolizam a identidade negra periférica”.
As amigas Camila Gael, 32, e Alice Siqueira, 33, que moram no bairro Jacarecanga e já têm a Praia da Leste-Oeste como ponto de parada obrigatória aos fins de semana, escolheram o local para desfrutar do tempo livre neste sábado.
“É praticamente nosso quintal, a gente consegue curtir e depois voltar para casa andando mesmo. Eles sempre fazem programações que a gente curte: um samba, um pagode, um reggae, um funk”, comenta a auxiliar administrativa Alice.
“A gente vem muito porque é o nosso rolê, é nossa galera que se mistura, fortalece o corre da quebrada e faz a festa acontecer. É uma missão dar conta de toda essa estrutura, é quase um festival”, completa Camila, que é operadora de caixa.
Para a cantora e compositora Mumutante, assistir a essa movimentação pela segunda vez desperta o sentimento de esperança: “Trazer esse movimento para cá é uma forma de afirmar que a cultura de periferia também está presente na praia. Eu que sou da Sabiaguaba percebo muito isso”.
“Ver isso tudo acontecendo com meus amigos, a galera que eu conheço, é incrível, é uma sensação de retribuição, a gente canta com o coração cheio demais. São pessoas especiais e com quem tive um contato verdadeiro, de trocar ideias, chorar junto, sonhar junto”, expõe.
“Potencializar essas iniciativas é combater o racismo que existe, é mostrar que dá para fazer o corre, gerar renda, pagar as contas, comer bem e ainda ter um momento de lazer, a tirar uma onda, a cuidar da saúde e tudo mais a que temos direito”, manifesta um dos idealizadores do projeto, Alécio Fernandes Rafael, apelidado na quebrada de Pretim Dalest, 29.
“A nossa praia infelizmente é super estigmatizada não só pelo jeito como é retratada nos programas policiais, mas também por essa usina de tratamento de esgoto da Cagece que tem do nosso lado, causando esse estereótipo, preconceito e a impressão de que nosso lugar cheira mal. Mas na verdade é uma das poucas praias próprias para banho na cidade”, observa.
Por meio do Espaço Criativo Soulest, em parceria com o instituto Nubank, a iniciativa se propõe a combater as históricas desigualdades e as barreiras burocráticas que têm prejudicado as comunidades negras, faveladas e LGBTQIAP+ dentro de Fortaleza.
Na casinha azul, ao lado da barraca Foi Sol, que é um empreendimento dos pais de Dalest, são desenvolvidas atividades nos eixos de cultura e arte, ecologia e saúde, esporte e lazer, tecnologia e inovação. As ações vão desde limpeza da praia até aulas de surfe com as crianças da comunidade.
“A gente vem pensando formas de fazer essa conexão com a natureza, de fazer com que a comunidade consiga se alimentar mais dessa identidade, da nossa realidade, desse lugar de cuidado com os nossos”, ratifica.
Dalest explica que “a festa está totalmente ligada a isso, juntar coletivos em um espaço criativo onde, para além do discurso, seja possível sistematizar ideias, formações, conexões”.
“A gente precisa chamar a responsabilidade das instituições para nossas demandas por políticas culturais, de juventude, de saúde, para que a gente possa pensar essa cidade melhor. Vamos descentralizar esses recursos, o que a gente faz aqui não é só produção cultural, é produção de vida”, declara.
Original da favela: periferia se veste de expressões e desfila singularidades
A proposta do baile também se traduz no estilo de quem frequenta o ponto cultural: as diferentes cores, texturas e tipografias que compõem o “favela wear” expressam a qualidade do que é produzido na periferia também no quesito moda.
Entre as peças, desfilavam singularidades os modelos da MANCUDA, marca descrita como original da favela que se veste da proposta de uma moda contra-hegemônica.
“Essa festa é um grande movimento que está dentro de todas as linguagens: da música, do cinema, do teatro. Você chega aqui e vê esse encontro de todas elas no mesmo lugar, no mesmo território. E a moda também faz parte desse encontro”, ressalta o designer de moda Carll Souza, um dos criadores da marca de moda autoral.
“A não criminalização do nosso espaço é uma luta que tentamos travar há muito tempo”, assevera o CEO da MANCUDA.
“Não só da Praia da Leste, mas também da Barra do Ceará, que foram espaços esquecidos mas que sempre estiveram aqui, enquanto os olhos continuam voltados para a Praia de Iracema e para o Meireles”, afirma.
“Existe essa ânsia territorial que se mostra aqui. Existe uma região costeira inteira dentro da Capital, se ela foi esquecida pelo Poder Público, ela não foi e nem será esquecida por nós”, assegura.
“Esse é um espaço onde eu, como pessoa preta, LGBT, posso andar de mãos dadas com meu namorado. Onde eu, como pessoa gorda, posso andar para cima e para baixo de fio dental. Onde eu, como uma pessoa não binária ou travesti, consigo me sentir confortável e pertencente”, finaliza.