No verso do cartão-postal: população pobre vê uma "Beira Mar para ricos"

Para moradores com menor poder aquisitivo, mudanças na Avenida tornam a orla restrita para o público turista ou de classe média alta. Principal cartão-postal da Cidade pode atravessar processo de gentrificação, alertam especialistas

Enquanto caminhava em busca de algum lugar para comer, o casal Marcelo Lima, 23, e Vivian Amorim, 42, conversava sobre as mudanças na avenida Beira Mar, em Fortaleza. Após alguns meses sem ir à praia, o mecânico e a comerciante tiraram a tarde do sábado, 2, para passear juntos pela orla e apreciar o pôr do sol — mas foram pegos de surpresa com as obras ao longo da alameda.

“Eles mexem tanto, desmancham e depois fazem de novo. Tinha visto a notícia, mas não sabia que vinha até aqui, que era onde ficava um monte de gente vendendo comida. A gente tem costume de comprar dos ambulantes mesmo”, comenta Marcelo.

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Acostumados a ficar próximo ao Poço da Draga, um dos trechos que está cercado por tapumes, os dois resolveram seguir até o espigão do Náutico e fazer algum lanche pelo caminho.

Ambos do bairro Bonsucesso, eles contam que preferem essa parte da costa para assistir ao entardecer. “Lá [no Poço da Draga] o visual é mais limpo, não existe esse monte de prédio na frente, tem a mulher da coxinha perto, o rapaz da tapioca, tem mais gente como a gente. Ainda mais agora que a gente ficou sabendo que vão privatizar essa parte”, diz Vivian, ao se referir à concessão dos espigões à iniciativa privada pela Prefeitura de Fortaleza no dia 29 de agosto.

"Achei ruim, quer dizer que vai restringir mais ainda o acesso? A gente sabe pra quem é essa melhoria. A gente penando pra achar um lanche porque em volta as coisas são tudo cara (sic). Esse negócio de Beira-Mar de todos, mas é só pros ricos mesmo. Quando é pra eles as coisas boas aparecem ligeiro demais "

Vivian Amorim, 42, comerciante

Marcelo acredita que “essa parte [da Cidade] é para os ricos, pobre não é pra se misturar. Os pobres têm que ir pra longe e só pisar aqui pra trabalhar para os ricos. É isso que parece que eles querem fazer”.

“Quando é família grande e tem criança não dá pra tirar gastar R$ 100, 150, 200 numa ida pra praia. Tem gente que gasta isso numa refeição, mas pra muita família daria uma feira”, afirma.

Para a vendedora ambulante Maria José, 40, “sempre foi assim, só está aumentando, então é pensar em estratégias”: “Nas barracas é tudo caro, eu já saí de casa alimentada pra não ter que comprar nada. Um almoço aqui não dá. Até a cadeira com guarda-sol a galera já traz de casa pra não gastar aqui”.

“Já começa na logística. Quando eu era criança, como a minha mãe teve muitos filhos, quando a gente vinha pra praia, no dia anterior já preparava a comida pra trazer, baião e farofa. Chamavam até a gente de farofeiro”, lembra.

O local de lazer no fim de semana recentemente também se tornou o local de trabalho dela, que decidiu sair do regime CLT para se dedicar à venda de brigadeiros na praia: “A concorrência é grande, mas tem público. Por mais que tenha umas partes elitizadas, aqui ainda é a única opção de lazer pra muita gente, né?”.

Dinâmicas privadas na orla podem culminar em gentrificação da avenida Beira Mar

Para o aposentado Márcio Provença, 72, que frequenta a avenida Beira Mar há mais de 40 anos, a requalificação e a concessão dos espigões são obras positivas, mas que tendem a concentrar “quem tem mais dinheiro para consumir, que é turista e classe média alta”.

“Vai tirar a classe mais baixa dos locais e vai ser um privilégio, sendo que é o divertimento do povo, né? A gente vê gente de todo jeito, anda rico e pobre, quem tem bicho, quem tem criança, quem faz esporte. É tão bom o pessoal se divertindo. É um lazer”, descreve.

“Aí bota um negócio sofisticado, não é acessível para muitas camadas. É uma melhoria? É. É uma benfeitoria muito boa, mas restringe um pouco porque vem pra atender a uma clientela mais refinada, um potencial turístico”, analisa.

“Agora a violência está grande. É assalto, é morte. E não é só aqui, é em qualquer canto. Isso pode dar a ilusão que é uma cidade organizada e sem problemas aos olhos dos outros, uma falsa sensação de segurança, mas quem vive aqui sabe que a realidade é diferente”, acrescenta a aposentada Verônica Mesquita, 67.

“Morei aqui perto quando ainda era uma calçadinha, só tinha casa. Frequentei aqui adolescente, quando ainda não tinha esse monte de prédios. Hoje em dia a orla tem uma outra identidade, outra organização”, coloca.

A aposentada destaca, ainda, que “falta opção de lazer para outros lugares da cidade, está concentrado aqui. Mas a gente sabe que pra uma pessoa da periferia vir pra cá ela tira um dia inteiro, que geralmente é o domingo, aqui fica bem mais lotado”.

“Uma cidade vai muito além do que o turismo promove. O turismo é importante, óbvio, mas a cidade tem que ser, acima de tudo, para as pessoas que já estão aqui”, afirma a arquiteta e urbanista Amanda Gomes.

“A quem argumenta que não vai ser pago e as pessoas vão continuar utilizando, procure sobre o termo gentrificação Chama-se gentrificação o processo de segregação socioespacial em que populações com menos renda se veem forçadas a deixar locais que passam por valorização econômica para dar lugar a outros grupos, em geral de maior poder aquisitivo.
. A ideia é segregar ao ponto que aquelas pessoas que não têm dinheiro para utilizar aquele espaço não andem mais lá, porque não se sentem mais à vontade para estar lá”, explica.

“Um exemplo muito claro é aquele shopping no Papicu, um shopping de classe média alta para a classe média alta no meio de uma comunidade. Aí você tem um espigão que vai ser abarrotado de estabelecimentos pagos que uma grande parte da população que anda naquele lugar não vai poder usufruir”, destaca.

A arquiteta pontua que, “assim, aquele lugar que antes era utilizado para o lazer de todos porque era um espaço público, vira um espaço para quem tem dinheiro e que pode utilizar da melhor forma que eles querem: gastando dinheiro”.

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