Chacina do Curió: quarto dia de júri é marcado por embates entre acusação e defesa
As discussões se acaloraram durante o depoimento do ex-perito geral, Ranvier Feitosa Aragão, contratado para fazer uma perícia particular do caso
19:23 | Set. 01, 2023
O quarto dia de julgamento dos oito policiais militares acusados de omissão do dever de agir, na madrugada que aconteceu a Chacina do Curió, foi marcado por discussões entre os representantes da defesa e a acusação dos réus, em especial durante o depoimento do perito Ranvier Feitosa Aragão. Em uma dos momentos, a representante do Ministério Público do Estado (MPCE), promotora Alice Iracema, chegou a dizer que a situação estava virando “uma feira”. “Isto não é uma feira. Isso é um tribunal”, advertiu o juiz alertando para que a fase de debates não fosse antecipada.
Ranvier Aragão já foi diretor da Perícia Forense do Ceará (Pefoce) e foi contratado para fazer uma perícia sobre o trajeto das viaturas e a tese de que não teria havido omissão no atendimento das ocorrências. Antes de começar a depor, o MPCE fez um pedido para que Ranvier não pudesse testemunhar, alegando que ele tinha três Procedimentos Administrativos Disciplinares (PADs) e processos judiciais sobre perícias com indícios de falsa perícia na Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).
A defesa, no entanto, apresentou certidões negativas que comprovam que não tem nada em aberto contra ele, dizendo que os processos administrativos e judiciais foram arquivados e o colegiado de juízes indeferiu o pedido dos promotores. Ao longo do depoimento, o perito respondeu perguntas técnicas e indicou inconsistências no sistema de localização da PM, que, de acordo com ele, estava “sujeito a falhas terríveis”. Ranvier também apontou que, em muitos casos, o policial não conhece a área em que está operando.
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Ao ser questionado pela promotora se teria ido ao local da chacina e se teria visualizado a ocorrência, o perito respondeu que não. No depoimento, ele aponta ter feito uso do Google Maps, com base na ciência da perícia. O perito fala especificamente da viatura 1072, a qual, segundo ele, teria atendido a ocorrência na rua Elza Leite Albuquerque, ponto em que não seria possível visualizar os corpos, conforme o laudo dele.
A promotoria então rebateu o apontamento, demonstrando que a foto posta no documento não corresponde à rua citada por ele, sendo referente à rua Odilon Guimarães. O MPCE ressalta que o laudo da viatura 1069, acionada para ocorrência na rua Jorge Souza, teve como ponto de referência a escola Elza Albuquerque e não teve como ir ao local, por conta da distância de um ponto para o outro. O perito negou que tenha sido por esse motivo e afirmou que uma ocorrência era no Norte e o outro para o Sul, em “caminhos opostos”.
De acordo com a advogada, que faz a defesa de José Haroldo Uchôa Gomes, Gaudioso Menezes de Matos Brito Goês e Francinildo José da Silva Nascimento, a viatura dos policiais estava em outro local e não trabalhava na área onde a chacina aconteceu.
“Quando o Centro Integrado de Operações de Segurança (Ciops) foi acionado, foram enviadas viaturas que estavam próximas do local e eram da área, que cobriam a região do Curió. As três viaturas arroladas nesse processo, nenhuma pertencia a área da chacina. Isso chega a ser absurdo. É importante que a população saiba, são policiais militares que estavam trabalhando em outra área e estão arrolados no processo”, acrescentou a defesa.
A segunda testemunha a depor foi um operador de rádio da Ciops, que não estava de serviço no dia do crime, mas explicou como o sistema funciona. Ele diz que, muitas vezes, a ocorrência é gerada sem o endereço completo, apenas algumas referências e é atualizado via terminal da viatura.
Ele faz críticas aos Terminais Móveis de Dados (TMD), cuja tela seria muito pequena e difícil para o policial acompanhar na viatura. “Nesse meio tempo, o policial pode até deixar o local ou estar em outro canto. Não tem como o operador da Ciops saber em tempo real onde está a viatura. Muitas vezes, a viatura fica ‘travada’ em determinado local, mesmo que o operador saiba que ela está em movimento. A principal forma de comunicação entre Ciops e viatura é via rádio, embora possa ser feita também por telefone”, assegurou a testemunha.
Direitos Humanos
A representante da Coordenação Geral de Combate à Tortura e Graves Violações de Direitos Humanos e do Ministério dos Direitos Humanos, presença de Fernanda Oliveira, esteve no Fórum Clóvis Beviláqua nesta sexta-feria, acompanhando a sessão do júri.
“Estamos acompanhando como observadores com o objetivo de garantir que o julgamento se desenvolva com respeito aos direitos humanos. Tanto em relação às vítimas e suas famílias, quanto em relação aos acusados”.
Ela ainda relata que a coordenação recebe uma demanda baixa de denúncias de tortura oriundas do Ceará, mas acredita que isso acontece por conta de subnotificações. “Quanto mais pobre e menos movimentos sociais estruturados o estado é, mais as situações de violação de direitos e garantias fundamentais são subnotificadas. Então, estados do Sul e Sudeste, onde a renda é maior e existem organizações mais antigas e estruturas, denunciam mais”, pontua.
Com informações dos repórteres Jessika Sisnando e Lucas Barbosa