Igreja em Saída: missa em Fortaleza debate violência letal no Ceará

Mães do Curió e outras pessoas tocadas pela violência letal no Ceará se reuniram na Praça João Gentil na manhã deste domingo, 20. Cantos e ofertórios se uniram a depoimentos emocionados

Dezenas de pessoas se reuniram na manhã deste domingo, 20, para manter viva a memória de vítimas da violência letal no Ceará. Entre cantos e ofertórios, a Praça João Gentil, no bairro Gentilândia, em Fortaleza, recebeu uma missa ecumênica do Movimento Igreja em Saída, que reúne organizações católicas do Estado voltadas para ações e debates sociais.

O tema do encontro, que ocorre no terceiro domingo de cada mês, desta vez focou na luta das mães do Curió, cujos filhos foram assassinados na Chacina de novembro de 2015. O momento foi emblemático também devido ao local: a Praça João Gentil fica uma rua depois da Praça da Gentilândia, que foi cenário, em 2019, de outra das chacinas ocorridas no Estado.

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A missa ocorre dias depois da série de ocorrências de insegurança pública nos bairros Pirambu e Carlito Pamplona. Durante o evento, os padres repassaram o microfone para algumas pessoas presentes, que pediram orações para a família de pai e filho mortos no Eusébio na última sexta-feira, 18; um dos suspeitos é policial militar.

Mãe de Álef Souza Cavalcante — que tinha 17 anos quando foi assassinado na chacina do Curió —, Edna Carla teve uma participação emocionante na celebração. “Toda a justiça do mundo não vai preencher o lugar vazio, não vai abrir a porta na hora que nosso filho chegava [em casa], não vamos fazer o almoço que eles gostavam”, relatou ela.

Com olhos embargados, Edna clamou para que pais e mães “parem de legitimar a morte” de filhos. “‘Morreu porque era bandido, estava devendo’. Devendo o quê? É o sistema que nos deve emprego, condições melhores [de vida], moradia. Nós somos roubados todos os dias quando vemos uma pessoa morando no meio da rua, quando um irmão nosso está dormindo no relento, como aqui mesmo nessa praça [João Gentil]”, disse a mãe.

Edna encerrou o discurso denunciando a violência policial: “A Polícia não para de matar e nós não podemos aceitar. Se meu filho tivesse morrido de qualquer [outra] coisa, hoje eu estaria em casa, mas não. Meu filho foi morto por pessoas que pagamos. Nós não podemos pagar a morte dos nossos filhos”.

Também emocionada, a vereadora Adriana Gerônimo (PSOL) sublinhou ser uma mãe negra moradora da periferia para narrar a dor da preocupação constante “de não saber se seu filho vai voltar no final do dia”.

“Desde criança ouvi mamãe orientando meu irmão: ‘olha não saia sem o documento, porque se a Polícia lhe parar, a primeira coisa que pedem é o documento’. E acho que todas as mães do Curió deram essa orientação para seus filhos”, comentou a assistente social.

Adriana traçou um paralelo entre Maria, mãe de Jesus, e todas as mães que hoje são afetadas pela violência: “Uma coisa que nos une é a dor da perda. Foi imposta à vida de Maria a dor no Calvário, de ver seu filho torturado pelos agentes do estado daquela época. Ouviu, como as mães do Curió, que o filho era bandido e lutou para provar sua inocência”.

Convidado a falar, o deputado estadual Renato Roseno (PSOL) usou seu tempo à frente do público para “pedir perdão”. “Pedimos perdão pela falta de reparação, perdão porque até hoje o Estado formalmente não pediu desculpas e não reparou a essas mães a dor que seus agentes lhe infligiu”, declarou.

Para a comerciante Suderli Pereira, mãe de Jardel Lima dos Santos, outra vítima da chacina do Curió, o que resta para os familiares de vítimas da violência é a esperança. “A gente queria nossos filhos vivos, mas isso não podemos ter mais. A única coisa que a gente tem é esperança”, contou.

A esperança por justiça pelos seus filhos, no entanto, pode ter “gosto amargo”, disse Suderli. Quatro policiais foram condenados pela chacina do Curió, no último mês de junho. Outros dois julgamentos, envolvendo outros 16 acusados, estão marcados para 29 de agosto e 12 de setembro.

A força para enfrentar novas etapas jurídicas também vem da fé, de acordo com Suderli. As mães do Curió, explicou ela, têm crenças diferentes, mas atravessam a distinção do credo para se unir em busca de reparação.

“É bonita demais a mão de quem conduz a bandeira da paz”

União é a palavra de ordem para a igreja atualmente, frente a um “desiquilíbrio social abissal”, afirmou Vanilo de Carvalho, presidente da Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CBJP) no Ceará, vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). “A todos que têm no seu coração a força e a esperança, que a gente se congregue em unidade”, disse.

Segundo Ermanno Allegri, um dos padres que conduziram a missa, a proposta do Movimento Igreja em Saída é unir a religião à defesa dos direitos humanos. O grupo começou, segundo ele, com pessoas comprometidas a ações concentradas em grupos socialmente vulneráveis.

O nome da organização vem do papa Francisco, que usou o termo “igreja em saída” como uma convocação a fiéis e sacerdotes para intensificar as atividades sociais da instituição, deixando de focar na igreja como um edifício — isto é, “saindo” de dentro da igreja para se integrar à sociedade.

Apesar de algumas congregações recusarem o foco na “caridade”, como padre Ermanno prefere chamar, ele pronunciou que a igreja deve “assumir setores colocados à margem na sociedade, ou a igreja serve só para fazer liturgia”.

“A paixão de Jesus era o reino de Deus, e não estamos falando do céu. Afinal, ‘seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu’, então o que Deus quer deve acontecer aqui na Terra. É vontade de Deus ter jovens massacrados?”, questionou o sacerdote.

“A escolha pelos direitos dos mais pobres não foi feita pela igreja, e sim por Jesus. Em sua primeira pregação pública, na Sinagoga de Nazaré, ele disse que veio para os pobres. Hoje, é uma escolha consciente que a igreja assumiu, em toda a América Latina”, acrescentou.

Allegri sublinhou que argumentos a favor de uma igreja em saída podem ser encontrados na Bíblia: “A gente não precisa inventar esquemas mirabolantes [para justificar o debate social]. "Na sagrada escritura, você percebe que ter um contato com Deus te abre às outras pessoas, e não fecha. Jesus queria transformar a humanidade nessa palavra bonita, reino de Deus. Criar valores novos que orientam as decisões. Essa é a finalidade da igreja, também”.

O público da missa deste domingo, relatou o sacerdote, incluía pessoas de crenças e contextos diferentes, inclusive fiéis que pararam de frequentar paróquias por estarem “cansados de escutar”, de figuras religiosas e colegas de fé, “bobagens” em crítica às pautas sociais.

“Agora, qual o caminho certo? Eu não sei. Pode ser que daqui [do Movimento Igreja em Saída] nasça alguma ideia ou iniciativa mais concreta [como uma congregação nova], precisamos esperar. Só sabemos que a igreja tem que ser igual hospital de campanha e abrir as portas para o povo”, concluiu.

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