Casarão do Jacarecanga: carregado de histórias, prédio corre risco de colapsar
Edifício construído no século passado era sucesso entre moradores e turistas. Casarão é projetado pelo arquiteto húngaro Emílio Hinko e começou a ser construído por volta de 1930
08:00 | Ago. 15, 2023
Uma relíquia erguida no bairro Jacarecanga está interditada há dois anos pela Defesa Civil de Fortaleza. De acordo com o órgão, a interdição do Casarão localizado na rua Oto de Alencar n° 50 com Guilherme Rocha, bem na esquina da Praça Gustavo Barroso (do Liceu), acontece com base em um relatório de vistoria que identificou possível risco do imóvel colapsar.
A Procuradoria Geral do Município, junto à Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor), dá seguimento ao processo de análise do edifício, visto que, o Casarão não é tombado, mas está localizado na poligonal de entorno do Colégio Liceu do Ceará e situado no perímetro da Declaração de Relevante Interesse Cultural do Conjunto Urbano do bairro Jacarecanga.
Em tempos de ouro do Jacarecanga (de 1950 até o fim da década de 90), surtia nas pessoas — principalmente do alto clero — um efeito de bem-estar e carinho pelo bairro, que, outrora, fora a área mais nobre da Capital.
Segundo a Prefeitura de Fortaleza, o Casarão é um bem particular projetado pelo arquiteto húngaro, Emílio Hinko. O prédio só começou a ser construído quando Emílio se mudou da Hungria para o Brasil, em 1930, e por isso não há registro na base da Secultfor quanto à data exata da construção.
Popularmente, o imóvel é conhecido como o “Casarão da Santa Casa”. Todavia, o Casarão nunca teve um nome próprio.
Em nota, a Santa Casa de Fortaleza esclareceu que o apartamento número 02 — último andar — continua sendo propriedade da unidade filantrópica.
No entanto, em 1967, o apartamento número 01, situado no coração da casa, foi vendido à Manuel Nascimento da Costa, falecido. Hoje, Maria Vânia Coelho da Costa, de 63 anos — filha mais velha da família — é quem tem a posse. A família morou por 56 anos no espaço.
Para muitos, nunca foi só um Casarão
Apesar de sedutor por si só, um dos velhos charmes — que concentrava maior parte dos olhares das pessoas — esteve na parte inferior do Casarão. Era o restaurante do Fabiano. Um emprendimento familiar que nasceu em 1958.
Amaurílio Santos, falecido, pai de Fabiano da Silveira Medeiros, de 79 anos, comprou, uma pequena parte do imóvel da Santa Casa. Lá, Amaurílio começou a empreender com uma leiteria, chamada "Leiteria Jacarecanga".
Anos depois, o negócio foi fechado devido à proibição de comércios que vendiam leite natural no País. “Só podíamos comercializar leite pasteurizado. Era muito caro. Então, inventamos o negócio da panelada”, relembra o filho Fabiano. Com a decisão, ele e o pai expandiram da lateral esquerda até a extremidade da parte direita, o que tornou o ambiente mais amplo a fim de atender a grande demanda da clientela.
Fabiano passou 63 anos trabalhando no estabelecimento. Para tanto, andarilhos ainda o reconhecem por sua deliciosa panelada, caldo de mocotó, suco de laranja, entre outras iguarias.
Inclusive, com direito à homenagem do Corpo de Bombeiros Militar do Ceará (CBMCE). "Os bombeiros fizeram uma festa para mim”, mostra — com orgulho — as gratificações penduradas na parede.
“Vinham jogadores de futebol, como Da Costa (ídolo do Ceará Sporting Club), porque o centro de reabilitação era logo na frente. Então, todo jogador que se contundia aparecia no meu restaurante. Tanto fazia se era do Fortaleza E. C. ou do Ceará S. C., virava amigo", memora, com alegria na voz.
"O Barros Pinho (PMDB), que foi prefeito de Fortaleza e professor do Colégio Oliveira Paiva, era muito nosso amigo, o deputado estadual Cláudio Pinho (PDT), também. Assim como o coronel Edmilson Nogueira (PSDB), que tinha todo o prestígio com o Tasso Jereissati (PSDB). Iranildo Pereira (PMDB). Todos eram meus clientes. Aí, quando chegava o Iranildo, Barros Pinho e Edmilson — na mesma hora —, às vezes rolava algumas confusões, mas não tinha atrito não. Era gostoso demais ver esse pessoal no meu restaurante.”
“Ave maria, sinto falta demais desse pessoal que fazia parte da amizade da gente. Muitos frequentadores daqui já morreram”, afirma.
Há mais de 50 anos, Fabiano mora a duas casas do Casarão. “Minha família foi toda criada no Jacarecanga. Uma mulher e três filhos. Morávamos aqui [casa a poucos metros de distância do Casarão], e trabalhávamos no restaurante [embaixo do Casarão]”. Atualmente, nenhum familiar vive com Fabiano.
No auge, o restaurante do Fabiano contava com mais seis funcionários. Uma nunca foi embora: dona Silvana Morais, de 47 anos.
“Ela é a minha protetora. É uma relação de família e muito amor, sem dúvidas. Os filhos dela me chamam de vovô. Sempre tive muito cuidado em tratá-los bem e levá-los ao colégio. Trouxe ela para cá, ela veio morar aqui comigo”, disse Fabiano.
Silvana trabalha há 16 anos com Fabiano. A cozinheira e protetora de longa data não esconde o saudosismo ao lembrar da fama do restaurante em um passado não tão distante.
“Todos foram e eu fiquei. Agradeço a eles por me acolherem e terem me dado um emprego. Meus filhos eram pequenos quando cheguei, hoje o rapaz tem 15 e a moça tem 17. Foi bom, e continua sendo”, ressalta, emocionada.
“Era muito bom. Tinha movimento, vendia muito, as pessoas achavam um lugar bonito. Vinha gente de fora, de São Paulo. Os turistas sempre visitavam. Choraram muito quando acabou. Ainda tem gente que liga para cá, procurando pelo seu Fabiano. Ele ainda é muito conhecido”.
Ela revela que o motivo do fechamento foi a falta de clientes durante a pandemia da Covid-19. "O Fabiano e a família já estavam estressados porque, como o movimento estava fraco, não tinha dinheiro nem para pagar os funcionários”.
Amigo e cliente, José Almir da Silva, 69, aposentado, passeia pelo Jacarecanga desde criança. “Minha vida toda foi no Jacarecanga. Estudei no Liceu. Nesta época, frequentava o restaurante do Fabiano para lanchar, assim que chegava da praia. Coisa de menino, tomava água e picolé. Quando comecei a estagiar, passei a beber aqui.”
Até hoje, Almir preza pelos bons costumes. “Venho para cá conversar com o Fabiano. Durante a semana, aos sábados, passo por aqui e na loteria. Ficar em casa é cansativo”.
"Infelizmente, não podemos fazer nada. Vai se acabando, vamos ficando mais velhos, e temos que aceitar. Esquecer mesmo.", encerrou Almir, em tom de tristeza.
Interdição: novo proprietário pede restituição do valor pago
Em 2021, cerca de quatro meses antes da Defesa Civil Municipal visitar o Casarão, a filha mais velha de Fabiano, Fabiana da Silveira Medeiros, vendeu o restaurante por R$ 220 mil. “Pelo ponto, era o mínimo. Ainda acho que vendi por uma mixaria.”, diz Fabiano.
Meses depois, por questões de segurança, a Defesa Civil instalou tapumes na frente do Casarão. O novo proprietário, por sua vez, se sentiu lesado e entrou com um processo solicitando o ressarcimento do dinheiro aplicado na compra do imóvel. "Ele achou que eu tinha agido de má fé, o enganado, e vendido um prédio deteriorado, coisa que não fiz. Posso garantir que desonestidade, aqui, não existe".
“O prédio ficou abandonado só depois que vendi. Antes, moravam duas famílias na parte de cima. Tinham vazamentos nas caixas d'água que causavam infiltração nas marquises. Enchiam, vazava, não desligavam, aí toda a marquise foi condenada. Chegou a cair partes algumas partes. E só depois que vendi vieram interditar", completa Fabiano.