Falta de verba suspende consultas iniciais de pacientes oncológicos no Ceará

Redução de verbas impede o Centro Regional Integrado de Oncologia (Crio) de atender novos pacientes, que procuram a unidade por meio do SUS

16:04 | Jul. 13, 2023

Por: Lara Vieira
FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 12.07.2023: Serviços do Crio são suspensos para novos pacientes oncológicos. (foto: FÁBIO LIMA)

Fortaleza vem enfrentando grave crise na área da saúde diante da drástica redução de repasses de verbas para hospitais. O resultado são unidades particulares de alta complexidade conveniadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) anunciando a recusa de novos pacientes para o tratamento de doenças graves, como o câncer.

Em um dos casos mais graves, o Centro Regional Integrado de Oncologia (Crio), uma das principais unidades de saúde em tratamento oncológico do Ceará, suspendeu, no último dia 11 de julho, as consultas iniciais para pacientes da Capital e de cidades do Interior.

Segundo a unidade de saúde, a medida foi tomada por conta da redução de 20% do teto orçamentário mensal pela Secretaria da Saúde de Fortaleza (SMS). "A realidade encontrada atualmente é de milhares de pacientes na fila para iniciar o tratamento, serviços com capacidade instalada para atendê-los, mas impossibilitados devido à redução de um teto", informou o Crio.

Um dos pacientes que aguardam por uma vaga na instituição é a cozinheira e diarista Vera Lúcia Barros, 52. Em conversa, ela relatou que os primeiros sintomas da doença surgiram em 2021. Preocupada com a dor no peito, Vera procurou o serviço público de Saúde de Itaiçaba, a 168 km de Fortaleza, cidade onde mora, e realizou um exame de mamografia.

O resultado, contudo, só veio no ano seguinte, apontando o aparecimento de um nódulo na mama. O médico que fazia o acompanhamento da paciente a encaminhou para um especialista na policlínica do município de Aracati, que me confirmou o câncer maligno. 

"O médico me disse que meu caso era grave e que eu tinha que iniciar o tratamento o mais rápido possível, em dentro de sete dias. Ele pediu o encaminhamento para o Crio. Eu fui na prefeitura daqui [Itaiçaba], toda segunda-feira a gente vai lá, mas eles sempre me dizem que eu tenho que esperar mais", relata Vera. 

"Eu sinto muita dor na mama e eu, inclusive, parei de fazer as coisas dentro de casa. O meu nódulo já está bem grande, com 2 centímetros", aponta Vera. A cozinheira e diarista aguarda por uma vaga de tratamento inicial no Crio há mais de dois meses

O situação é semelhante com a de Maria Helena Leite, 39, moradora de Madalena, município a 189,9 km da Capital. A paciente descobriu a doença em março deste ano, após realizar uma mamografia e uma biopsia, confirmando o diagnóstico de câncer de mama. 

Helena também entrou na fila de espera para iniciar o tratamento no Crio. "No dia 18 de julho vai completar dois meses que eu estou na fila de espera. A gente liga para a Secretaria de Saúde [de Madalena] e a notícia sempre é a mesma: continuo na fila de espera", lamenta a paciente.

"Meu esposo é gerente de uma fazenda e eu ajudava ele, mas parei. Todos os dias eu sinto dor e só tomo remédios para amenizar. Eu não to fazendo quase nada dentro de casa. Meu quadro está cada vez se agravando mais", relatou Maria Helena leite.

Uma doença que não espera

O Centro Regional Integrado de Oncologia (Crio) é regulado pela SMS. No local, são realizadas cirurgias, quimioterapia, hormonioterapia, terapias biológicas e radioterapia. Em março deste ano, a unidade de Alta Complexidade em Oncologia já havia anunciado uma interrupção nos tratamentos iniciais decorrente de uma redução no teto orçamentário mensal repassado pela SMS.

Segundo a direção da unidade, a atual interrupção também é em decorrência da falta de verba, que fica incapacitada de realizar tratamentos iniciais em pacientes atendidos pelo SUS.

De acordo com Eduardo Cronenberger, superintendente do Crio, existe um programa de pactuação entre Fortaleza e os municípios do Interior. Ou seja, a gestão municipal de Fortaleza custaria parte dos tratamentos desses pacientes, enquanto o restante seria de responsabilidade dos municípios.

Conforme o gestor da unidade, contudo, por conta do alto custo dos tratamentos oncológicos, as gestões do Interior deixam de arcar com as despesas dos pacientes enviados para se tratarem em unidades de saúde da Capital.

"Com o tempo, esse custeio não foi sendo pago por ninguém. As prefeituras não estavam pagando e a prefeitura de Fortaleza ficou com um déficit muito grande. Os municípios não têm capacidade de pagar e o Estado também vê isso como não sendo uma questão dele", pontuou o superintendente do Centro Regional Integrado de Oncologia.

Segundo a unidade, a demora no acesso aos tratamentos têm resultado em filas de espera que chegam a durar até três ou quatro meses. "O paciente tem um câncer que não vai esperar essa burocracia se resolver. Agora existe uma situação em que a burocracia está impondo a vida. Ninguém quer assumir esse custeio e o paciente está sofrendo", lamenta o gestor do Crio.

Vale ressaltar que pacientes oncológicos são assegurados pela lei dos 60 dias (12.732/12), que começou a vigorar em maio de 2013. A determinação garante aos pacientes diagnosticados com câncer o direito de iniciar o tratamento no Sistema Único de Saúde (SUS) em, no máximo, 60 dias após o diagnóstico da doença.

Unidades de saúde também reportam redução de repasses

Não só o Crio, mas outras unidades de alta complexidade de Fortaleza também reportaram uma redução drástica nos repasses de verbas. A Santa Casa, por exemplo, anunciou que durante a última contratualização realizada em novembro de 2022 houve uma redução do teto financeiro para cirurgias e tratamentos oncológicos.

“A redução foi de 25% para tratamentos e de 56% para cirurgias, o que nos impossibilita atualmente de realizar triagem de novos pacientes. Infelizmente, essa redução tem prejudicado os pacientes que necessitam dos serviços da instituição e que sofrem com essa patologia tão grave”, informou a unidade em nota. A Santa Casa de Fortaleza possui o serviço de oncologia mais antigo do Ceará, sendo referência no diagnóstico e tratamento através de quimioterapia e cirurgias.

Atualmente, há nove hospitais públicos habilitados para o tratamentos oncológicos no Estado: Cura d'Ars (atual São Camilo), Geral de Fortaleza (HGF), Universitário Walter Cantídio (HUWC), Infantil Albert Sabin (HIAS), Haroldo Juaçaba (Instituto do Câncer do Ceará, ICC) e Santa Casa de Misericórdia, em Fortaleza; Hospital Maternidade São Vicente de Paulo, em Barbalha; e Santa Casa de Misericórdia de Sobral.

O Instituto do Câncer do Ceará (ICC) ressaltou que todos os pacientes que chegam na instituição estão sendo atendidos. Contudo, a instituição ressaltou que “desde o ano passado, o teto do financiamento repassado pelo município foi reduzido. Além do problema dos repasses, o paciente oncológico sofre por não conseguir o encaminhamento para o hospital, mesmo diante da nossa ampla capacidade de atendimento”, declarou.

Medida do Ministério Público do Ceará

Em decorrência da falta do repasse de verbas suficientes em unidades de saúde no Estado, o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) anunciou a realização de uma audiência pública no próximo dia 26 de julho.

Devem participar da audiência representantes da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa); da SMS de Fortaleza; da Central de Regulação do Estado do Ceará e do município de Fortaleza; do Instituto do Câncer do Ceará (ICC); do Hospital Geral de Fortaleza (HGF); do Hospital Fernandes Távora; do Crio, e do Conselho das Secretarias Municipais de Saúde do Ceará (Consems-CE).

Na ocasião, segundo o MPCE, Sesa e SMS devem apresentar o Plano de Expansão da rede oncológica do Estado, com respectivo cronograma de ação e previsão de datas; bem como o Plano de Ação Assistencial e o andamento do Plano Estadual de Atenção à Oncologia.

Falta de verba: o que dizem as secretarias de Saúde

Em nota, a Secretaria Municipal da Saúde informou que Fortaleza concentra sete de nove estabelecimentos habilitados para tratamentos oncológicos no Ceará, correspondendo a 84% do atendimento estadual. Na Capital, 60% da demanda vem do Interior.

"Conforme normativa que regula a Oncologia, deveria existir um estabelecimento para cada 500 mil habitantes, assim, para atender a demanda, seria necessária a abertura de mais nove unidades no Estado", diz a SMS. "Financeiramente, Fortaleza tem a garantia de R$ 100 milhões anuais, advindos de um recente aporte do Ministério da Saúde. Porém, a Capital custeia R$ 160 milhões anuais. Neste contexto, há um subfinanciamento e necessidade de repasses de mais recursos".

A Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), por sua vez, ressaltou que o Centro Regional Integrado de Oncologia (Crio) é uma unidade de gestão plena do Município de Fortaleza. Além disso, declarou que "as unidades e os centros de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia, habilitados para tratamento de câncer no estado, recebem recursos diretamente do Ministério da Saúde via Secretaria Municipal de Saúde. A verba, portanto, não passa pela esfera estadual", disse em nota enviada ao O POVO.

A pasta ainda destacou em construção o Plano Estadual de Atenção à Oncologia, a fim de tornar públicos os protocolos, critérios e parâmetros de referência das linhas de cuidados no tratamento de câncer, fortalecendo o processo de monitoramento e avaliação dos serviços na Rede de Atenção à Saúde.

A Secretaria ressalta que a rede estadual conta com duas unidades que realizam cirurgias oncológicas de alta complexidade e tratamento quimioterápico em Fortaleza. São elas: Hospital Geral de Fortaleza (HGF) e Hospital Infantil Albert Sabin (Hias) - único serviço de oncologia pediátrica na rede pública do Estado.

No interior do Estado, a Sesa relembra que, em maio deste ano, o Ministério da Saúde anunciou a destinação de R$ 136 milhões ao Hospital Regional do Vale do Jaguaribe (HRVJ), dos quais cerca de R$ 60 milhões são para abrir o serviço de atendimento a pacientes com câncer. "A estruturação da unidade nesse setor está em andamento, com previsão de abertura do serviço ainda para o segundo semestre deste ano", concluiu a pasta. 

O POVO ainda contatou o Conselho das Secretarias Municipais de Saúde do Ceará (Cosems-CE) para um esclarecimento sobre o funcionamento do programa de pactuação e o repasse de verbas para a Saúde entre Fortaleza e os municípios do Interior. A matéria será atualizada assim que obter um retorno.