Correios entram na Justiça por reintegração de posse da Vila Almirante, em Fortaleza
Estatal argumenta que área habitada por cerca de 30 famílias é patrimônio da União e foi ocupada ilegalmenteMoradores da Vila Almirante, na Praia de Iracema, em Fortaleza, foram pegos de surpresa no começo desta semana com a visita de oficiais de Justiça e policiais do Batalhão de Policiamento de Choque (BPchoque) para notificar a comunidade sobre uma ação de reintegração de posse, movida pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT).
Inseto barbeiro apareceu em dois pontos de Fortaleza neste ano; LEIA
É + que streaming. É arte, cultura e história.
A estatal alega ser a legítima proprietária do terreno onde 20 imóveis foram construídos, numa área de aproximadamente 1,6 mil metros quadrados (m²). A vila está situada entre a avenida Almirante Tamandaré e a rua dos Pacajus e é cortada por um muro do complexo operacional dos Correios, que funciona ao lado.
Na ação judicial, protocolada em setembro de 2022 na 1ª Vara Federal de Fortaleza, a empresa acusa os moradores de invasão e pede a imediata desocupação da área. Segundo os Correios, o trecho do terreno que abrange a comunidade pertence ao patrimônio da União.
O argumento tem como base uma Nota Informativa expedida em 2021 pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU). “A poligonal encontra-se integralmente encravada nos limites dos terrenos de marinha e seus acrescidos”, diz trecho de certidão anexada ao processo, ao qual O POVO teve acesso.
As 30 famílias que residem no local têm 15 dias para apresentar contestação à Justiça. Todas elas receberam mandados de citação na última segunda-feira, 5, após determinação do juiz Luis Praxedes da Silva. Moradores ouvidos pelo O POVO relatam que a entrega do documento assustou a comunidade, que até então não sabia da existência do processo.
Reintegração de posse da Vila Almirante: moradores foram surpreendidos
O técnico de segurança do trabalho Marcelo Pinheiro, 47, relata que os oficiais de justiça chegaram cedo à Vila Almirante acompanhados de policiais fortemente armados. “Eles vieram 6h20min, acordando todos os idosos, e com o Batalhão de Choque. Era como se fosse uma coisa para botar todo mundo para fora de imediato”, narra.
A aposentada Hélia Rocha Araújo, 83, diz ter ficado ofegante ao perceber a movimentação dos policiais em frente à sua residência. “Eu não tive nem condição de ler o papel, fiquei muito nervosa.” O filho dela, José de Araújo Júnior, 63, comparou o momento a uma “operação de guerra”.
“Foi uma coisa muito agressiva. Os idosos todos passaram mal. Eles [os policiais] estavam armados para a guerra, com escudos e armas de grosso calibre. Nós ficamos apavorados”, descreveu o morador.
A presença dos agentes de segurança causou aflição na aposentada Idalina Gonçalves (áudio abaixo), 82, que afirma ter assinado por medo o termo de ciência da notificação entregue pelos oficiais de Justiça. “Eu vi um monte de policial dessa altura [aponta para o alto] com um negoção [arma] na mão, eu ia dizer que não ia assinar?” [sic]
Os moradores mais idosos contestam a versão dos Correios sobre ocupação ilegal do terreno. Segundo Hélia, a vila se formou há quase 100 anos. O pai dela, que era servidor do extinto Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis (DNPVN), foi o primeiro morador da área.
De acordo com a aposentada, ele construiu a residência da família — que até hoje é a mesma — após receber autorização do chefe regional do DNPVN. “Quando eu nasci, só existia a casa do meu pai aqui. Depois, outros funcionários ganharam liberação para fazer suas casas, e assim se formou a vila”, recorda.
Para muitos moradores, a permanência no local atravessa gerações. É o caso do ourives José de Araújo Júnior, 63, que mora na Vila Almirante desde a infância. “Tudo começou com meu avô. Depois veio meu pai, eu, meus filhos e agora até os meus netos vivem aqui.” A aposentada Maria do Socorro Alves (áudio abaixo), 74, que mora na vila há mais de 50 anos, foi testemunha de grandes transformações no espaço.
“Quando eu vim morar aqui não tinha muro, não tinha Correios, era só mato. Tinha uma linha de trem, cajueiros, os meninos brincavam no terreiro… Aí, de repente, eles [os Correios] vêm e querem ser donos de tudo”, lamenta, com os olhos lacrimejando. “Criei meus filhos e netos todos aqui. Quero viver até o fim da minha vida nessa casa”, completa.
Além de pleitear a reintegração de posse, a ação movida pelos Correios também pede à Justiça que os moradores sejam condenados a pagar uma indenização equivalente ao aluguel de todo o período de ocupação ilegal da área.
Procurada pelo O POVO, a empresa reafirmou ser a legítima proprietária do terreno e disse ter adotado as medidas judiciais cabíveis para reaver o patrimônio. A estatal declarou ainda que "segue acompanhando a ação na Justiça".
Atualização: Correios recuam e pedem suspensão de reintegração de posse de vila na Praia de Iracema