Escola Mandacaru busca letramento de pessoas em situação de rua em Fortaleza

Durante as aulas, alunos da escola popular aprendem a ler e escrever, além de compartilharem vivências e discutirem temas como linguagem, sonhos e política

A Escola Comunitária de Educação Popular Mandacaru, promovida pelo Grupo Espírita Casa da Sopa, é um projeto educacional que tem como objetivo contribuir para o letramento de pessoas em situação de rua em Fortaleza. A escola, que segue o método Paulo Freire, teve a aula inaugural no último dia 12 de abril e tem três aulas semanais, às segundas, quartas e sextas-feiras, às 18 horas.

Atualmente, a turma que acompanha as aulas no endereço da Casa da Sopa, na Rua da Assunção, no Centro de Fortaleza, é composta por 20 jovens e adultos em situação de rua com diferentes níveis de conhecimento da escrita.

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"Tem pessoas que não sabem absolutamente nada, não conhecem nem as letras, e outros que já têm uma noção, já sabem, por exemplo, escrever o próprio nome, lêem algumas palavras. A gente juntou todo mundo na mesma turma, mas a gente faz um acompanhamento diferenciado com eles”, explica a voluntária Lídia Valesca, que conduz aulas no espaço.

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Lápis, borrachas, quadros e cadernos individuais dos alunos foram adquiridos com apoio da comunidade e parceiros. No primeiro mês de aprendizado, as aulas foram pensadas em torno do tema “sonhos”. Já em maio, o tema explorado pelos alunos é política.

“No começo, o Brasil foi escravizado por Dom Pedro I, que não descobriu o Brasil, o Brasil já era descoberto pelos índios", pontuou um dos alunos, que prefere não se identificar, durante uma aula na última semana.

Em consonância, outros alunos também apontaram que o mundo seria dominado por políticos e banqueiros, ou por aqueles que detêm “os números”.

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Lídia Valesca lembra que, segundo o Censo de 2021, a taxa de analfabetismo entre pessoas em situação de rua em Fortaleza é de 18,8%, sendo maior que a média cearense e brasileira.

“Esse é um dado muito relevante e está muito relacionado ao empobrecimento, ao abandono, à extrema vulnerabilidade que essas pessoas viveram em suas vidas”, relata Lídia. Alguns dos alunos da escola Mandacaru lembram de ter participado da pesquisa.

As aulas na Escola Mandacaru são pensadas de acordo com o método de alfabetização freiriano e conduzidas por voluntários, que fazem questão de explicar que, no local, não há hierarquias entre alunos e professores.

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“Eu acredito nesse tipo de educação, que é a educação popular, que é a educação feita pelo povo. Quando a gente fala que não somos autoridades, é porque não somos mesmo. A gente tem experiência na área de educação, mas a gente está aqui dentro de um sistema de compartilhamento de ideias", coloca o professor, Paulo Probo, aos alunos.

Escola Mandacaru: nome da planta remete à resistência no Ceará

Em uma das aulas conduzidas no último mês, conta Lídia Valesca, a turma discutiu sobre o nome da escola. Mandacaru, como coloca a voluntária, “é o símbolo da resistência, uma planta tipicamente da caatinga, que aparentemente está morta, seca, mas basta cair as primeiras chuvas, viceja, verdejante”.

Esse é um dos assuntos sobre os quais os alunos da escola conversaram durante a aula da última quarta-feira, 17 de maio. Os alunos, sentados em uma roda, compartilharam maneiras de preparo de mandacaru, falaram de farofa de mandacaru, a fruta do mandacaru, a água da planta, todas diferentes formas de consumi-la que servem para saciar a fome de muitos deles e de suas famílias.

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É o caso de Wagner, que foi criado pela tia em uma fazenda em Itapipoca e lembra de, à época, não ter conseguido estudar. “A prefeitura só pagava a professora para ensinar a gente uma vez na semana, na fazenda. Se não estivesse na hora que a professora estava na fazenda, você perdia. Ela ia só uma vez na semana. Ou eu estava trabalhando, ou estava no roçado”, relata.

Aos 20 anos, ele veio a Fortaleza e passou a trabalhar na cidade. “Já fui trabalhar. Se eu tivesse estudando no começo, quando jovem, eu acho que hoje em dia eu era uma pessoa formada”, opina.

No período trabalhando em Fortaleza, ele passou a ter de lidar com a drogadição. “Eu, trabalhando, minha folga era de 15 em 15 dias, me acostumei [a ficar] no meio da rua. Nas minhas folgas, no lugar de eu ir pra casa, eu ia para o meio da rua”, relata.

Com isso, Wagner aprendeu a escrever o próprio nome — habilidade que passou uma semana treinando — anos depois, por meio do Ensino de Jovens e Adultos (EJA) em uma unidade do sistema prisional cearense.

“Eu estudava com um livro e no livro tinha uma foto assim: viver e aprender. Tinha uma mulher tão alegre que tinha aprendido a ler. Eu fiquei focando na foto dela. Eu disse: vou aprender a ler. O interesse foi tão grande, só em olhar para a foto, que a minha autoestima aumentou mais, porque eu não queria saber de colégio, não”, lembra.

Ao deixar a unidade prisional, no entanto, ele conta que tinha vontade de aprender mais e foi encaminhado por uma professora a uma escola fora da unidade, mas não chegou a frequentá-la por medo de ser reconhecido e discriminado como morador de rua.

Frequentador da Casa da Sopa, ele ficou sabendo do projeto da Escola Mandacaru e resolveu assistir às aulas e continuar, ali mesmo, o seu aprendizado, com o objetivo de um dia escrever uma carta — o conteúdo ele não quis divulgar.

Aprendizado é forma de esquecer "problemas da rua", relata aluno

Wagner diz que muitos problemas da rua são deixados de lado enquanto ele estuda. “A gente passa dois dias aqui, estudando, aí o tempo que a gente passa na rua, o que a gente passa, esquece. Enquanto a gente está aqui estudando, a gente aprende mais. A gente só vai para os problemas quando vai para a rua de novo. A gente aprende mais, a autoestima aumenta mais um pouco. Minha autoestima estava lá embaixo mas, depois que eu comecei a frequentar aqui, melhorou”, conta.

Outros assuntos discutidos durante a aula da última quarta-feira, 17 de maio, foram a política brasileira, tema que vem sendo abordado durante o último do mês, e a grafia da palavra “pensar”, se seria escrita com ‘s’ ou com ‘ç’. Apesar de explicar aos alunos que a palavra se escreve com “s” e não com “ç”, Paulo Probo diz achar importante comentar sobre como o idioma é vivo.

“A língua, ou falada ou escrita é viva dentro de uma sociedade, de uma determinada cultura. Isso muda. Uma hora o que é certo passa a ser errado, o que era errado passa a ser certo, e o mais importante é você se comunicar, seja com 'ç' ou 's'. O mais importante é você estar nessa peleja de querer expressar o mundo que você enxerga, e uma das formas é escrever”, afirma o professor.

Escrever e expressar as suas histórias são desejos compartilhados pelos alunos. Lucimar, que já morou na rua, mas hoje tem uma casa própria, diz que sabe escrever, mas está ali para aprender a ler.

Durante as aulas, ela conta orgulhosa que conseguiu escrever e então ler a palavra “Igreja”. O sonho dela, no entanto, é aprender ainda mais para conseguir escrever um livro que conte a própria história.

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