Famílias reclamam de demora no atendimento de crianças com alergia à proteína do leite

Segundo Aline Saraiva, presidente da Associação de Familiares e Amigos de Crianças com Alergias e Intolerâncias Alimentares (AFAC), pelo menos 20 famílias procuraram a associação nos últimos meses para relatar que estão na fila de espera do programa. Sesa nega atraso

14:00 | Mai. 14, 2022

Por: Alexia Vieira
FORTALEZA, CEARÁ, 12-05-2022: Karine é enfermeira e está na lista de espera para conseguir acesso ao leite específico para o tratamento de seu filho de 1 ano. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo) (foto: FERNANDA BARROS)

Para ter acesso ao Programa de Alergia ao Leite de Vaca, que disponibiliza uma fórmula infantil para os pacientes, crianças com essa alergia alimentar precisam passar por uma consulta com especialistas vinculados. No entanto, famílias reclamam da demora para conseguir atendimento do programa da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (Sesa), com períodos que chegam a dois meses. Com isso, para conseguir o leite específico para os alérgicos, elas precisam recorrer a doações de terceiros.

Desde que descobriu que o filho Paulo José, de nove meses, tem alergia à proteína do leite de vaca em março de 2022, Fernandes Pontes, 41, tem procurado respostas sobre quando o bebê entrará no programa do Estado. Assim como todos que precisam do atendimento, Paulo José foi levado a um posto de saúde de Fortaleza e conseguiu o encaminhamento no dia 22 de abril. No entanto, a data da consulta com o especialista do programa — que pode ser um alergista ou gastroenterologista, e um nutricionista — ainda não chegou.

“É um prazo muito longo. Um mês para conseguir o que é para ontem. A gente usou os recursos que tinha para comprar as latas e tivemos que partir para uma coisa mais extrema”, diz Fernandes. Depois de comprar três latas por R$ 240 cada e ganhar quatro de famílias e amigos, a esposa de Fernandes e mãe de Paulo, Monise, contou a história do filho no Instagram e pediu doações.

“Uma latinha dá para três dias. E quando você descobre (a alergia), está vindo de uma crise, porque tem que tomar antibiótico, ficar internada, e criança doente você sabe que vai gastar. É uma pancada”, relatou Fernandes. Com os pedidos de doação, o bebê ganhou 20 latas de leite Neocate, o qual deve ajudar a complementar sua alimentação, que consiste em sopas e frutas, até a data da consulta, no dia 19 de maio.

Fernandes também reclama da falta de informações para as famílias que esperam para entrar no programa, tanto em postos de saúde como em atendimentos privados. “Convivendo com isso a gente viu que carece de muita informação, até por parte dos profissionais. Não sabem nem orientar, ou como proceder, como diagnosticar, como tratar, manter a criança saudável e quais são os meios para buscar a alternativa”, reclama.

Também desde março aguardando uma consulta, Noah Santos, de um ano e seis meses, é outra criança que consegue o leite por doações. A mãe, Karine Ellen Santos, 32, é membro da Associação de Familiares e Amigos de Crianças com Alergias e Intolerâncias Alimentares (AFAC) desde que descobriu a alergia na primeira filha, que hoje tem oito anos.

“Se você não conseguir a doação, vai fazer o que? O prazo mínimo é dois meses, menos que isso você não consegue. E nem todo mundo tem essa condição de tá comprando”, afirma. O diagnóstico de Noah veio há três meses, quando o menino teve diarréia severa ao entrar em contato com leite de vaca e precisou ser internado em um quadro de desidratação.

Segundo Aline Saraiva, presidente da AFAC, pelo menos 20 famílias procuraram a associação nos últimos meses para relatar que estão na fila de espera do programa. A crise financeira piora a situação de quem espera, já que o leite tem um valor expressivo para o orçamento da maioria. “Não é um valor acessível diante das condições que a gente vive hoje de crise, desemprego, do alto custo de tudo. Não é uma fórmula comercializada em supermercado, nem toda farmácia vende, pra mãe do interior comprar não é fácil”, diz.

Aline afirma que a associação pretende ajuizar uma ação pelo núcleo de saúde da Defensoria do Estado e procurar ajuda da Comissão da Pessoa com Deficiência da Ordem Brasileira dos Advogados (OAB) do Ceará. A presidente reclama ainda da falta de informação e comunicação com as famílias que esperam para entrar no programa.

Sesa nega existência de fila de espera

Procurada pelo O POVO para se manifestar sobre a demora no atendimento das crianças, a Secretaria da Saúde do Estado (Sesa) afirmou que “não há registro de filas de espera”. Segundo a pasta, 200 consultas estão sendo disponibilizadas para maio, sendo 98 para pacientes de Fortaleza e 102 para pacientes do interior do Estado. Foram agendadas 160 pessoas.

Nos registros da Sesa, o paciente Noah Santos teve consulta no posto de saúde no dia 16 de março. Apenas no dia 28 de março, 12 dias depois, a criança foi incluída na Central de Regulação para ser encaminhada à rede estadual. Também foi registrada uma tentativa de contato com a família para marcação da consulta sem sucesso. Na noite de quinta-feira, 12, Karine recebeu uma ligação para marcação da consulta, conforme informou ao O POVO.

Já no caso de Paulo José Fernandes, foi registrada a consulta no posto de saúde no dia 22 de abril. No dia 26, o menino foi incluído na Central de Regulação. O agendamento da consulta foi realizado no dia 10 de maio. Paulo deverá ser atendido no dia 19 de maio.

O papel da marcação da consulta, de acordo com a Sesa, é da secretaria municipal de cada cidade. Em Fortaleza, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) afirmou que após consulta com o médico de um dos 116 postos da Capital, uma justificativa técnica é feita e a pessoa é encaminhada para o programa.

Apesar disso, as famílias relatam falta de informações nos postos de saúde, com a única orientação sendo "aguardar", segundo Fernandes e Karine. 

Em nota, a secretaria do Estado informou que há sete gastropediatras, 10 alergistas pediatras, oito nutricionistas pediatras, três enfermeiros e um psicólogo na equipe que atende os inscritos no programa. “Atualmente, 3.337 pacientes são assistidos pelo programa e acompanhados por especialistas”, conforme o texto da nota.

Para 2022, o orçamento do programa é de R$ 22 milhões. Segundo a Sesa, todo o valor é utilizado para a compra de quatro tipos de fórmulas infantis doadas pelo programa. Nos quatro primeiros meses do ano, 79.127 latas foram distribuídas. Conforme dados do portal da transparência do Estado, até abril, foram gastos R$ 2.056.172,00 do dinheiro disponível.

Como a APLV afeta a saúde da criança

A alergia à proteína do leite de vaca pode impactar o desenvolvimento das crianças caso ela continue tendo contato com o alimento, segundo a alergista Fabiane Pomiecinski, membro do Departamento Científico de Alergia Alimentar da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI). “Ela tem chance maior de desenvolver um déficit de peso e estatura”, explica. Além disso, o aporte de proteínas e outros nutrientes podem ser prejudicados.

Segundo a especialista, o número de pessoas com alergias alimentares tem aumentado com o tempo, mas não existe apenas um fator para isso. Fabiane cita componentes genéticos influenciam na condição, como pais com alergias alimentares, rinite, asma, e também e fatores ambientais, como famílias menores que vivem mais dentro de casa e sem contato com a natureza.

Fabiane explica que há dois mecanismos diferentes de alergia e, a depender de qual é manifestado pela criança, os sintomas podem aparecer imediatamente, até duas horas após o contato com o leite, ou tardiamente, até dias depois da ingestão. Os sintomas variam de urticárias, inchaços nos lábios e pálpebras, até sintomas respiratórios, gastrointestinais e queda de pressão.

A médica é uma das alergistas que atendem crianças pelo Programa de Alergia ao Leite de Vaca da Sesa. Na primeira consulta, ela relata que são feitos exames de sangue ou teste cutâneo. Em alguns casos, o diagnóstico é feito também por uma restrição do leite e, após um período, a reintrodução. Esse mecanismo se chama teste de provocação oral. Depois do diagnóstico ser confirmado, as crianças recebem encaminhamento para receber as latas de leite próprio para alérgicos.

Apesar do leite especial ser recomendado, segundo Fabiane, o alimento não é um medicamento e não serve como tratamento da alergia. “Isso não vai ajudar a criança a ficar curada mais rápido, é só um substituto do leite da vaca”, diz. Caso a mãe consiga alimentar a criança com outros alimentos e amamentar, não é necessário tomar a fórmula, conforme a médica. A cura, em alguns casos, vem com o tempo, com as crianças adquirindo tolerância ao leite ao passo que crescem.