Ter um lar e se sentir seguro: o desejo de Natal de pessoas em situação de rua

Natal dos usuários do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop) ocorreu ontem.

Música, comida, filas de pessoas esperando a vez para cortar o cabelo, pegar um kit de higiene e adquirir algumas peças de roupas doadas. Essa foi a festa de Natal dos usuários do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop), no bairro Centro, na manhã desta quarta-feira, 15.

Ter um lar e se sentir acolhido era um desejo que perpassava a maior parte das pessoas que estavam naquele local. O Natal se aproxima, e para os mais de 120 assistidos pelo Centro, a data só vem para reforçar um desejo comum por dignidade.

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Para alguns, naquele momento, o coração batia pela oportunidade de ter um lar, por recuperar os documentos e poder buscar remédios no posto de saúde, conquistar o respeito da família, rever o pai, a mãe, os irmãos e a filha.

O sonho do teto

Além de estarem em situação de rua, mãe e filha aspiram sonhos semelhantes: “Eu fico muito feliz quando a gente tem um canto para ficar e tomar banho. Se eu pudesse pedir algo de Natal seria uma casa para ficar. Eu me sentiria mais segura nessa casa”, disse uma jovem de 12 anos, ao lado da mãe, pai e do irmão.

A família está vivendo nessas circunstâncias há três meses. “A gente morava em um local alugado. Eu fazia um curso, que pagava uma bolsa. Esse dinheiro era usado para pagar o aluguel, mas o curso acabou. Esses meses estão difíceis, mas temos que continuar”, contou a mãe da menina,36 anos.

Durante a ação do Centro Pop, a mãe merendou, deu comida aos filhos dela, ajeitou a sobrancelha e pegou algumas roupas. Foi um momento divertido para a família, mas rapidamente o descontentamento ressurgiu e o motivo era o mesmo da filha: “Se eu pudesse ter algo, eu iria querer ter uma casa para morar com meus filhos”, diz a mulher enquanto esperava o esposo, na fila para cortar o cabelo.

As irmãs de rua

Ação pode ser banal e barulhenta para os passam em frente ao Centro Pop, mas para os usuários do equipamento aquele era um momento significativo, seja para dançar, rir, matar a fome, tomar um banho ou, por algumas horas, ser acolhido em um espaço que não seja as ruas e praças de Fortaleza.

 Shayene Paris
Shayene Paris (Foto: Thais Mesquita)

No Centro Pop, Shayane Paris, Brena Sofia e Adriana Freitas aproveitaram a música para mexer o corpo, comer e tirar brincadeiras umas com as outras. “A confraternização é muito importante. É o momento em que a gente ocupa a cabeça”, diz Shayane. “Eu brinquei, ganhei o kit e agora vamos ficar todas bonitas”, comenta Brena, enquanto dá uma risada. “É maravilhoso essa ação. Hoje eu aproveitei dançando e comendo”, complementa Adriana Freitas.

Além do lar e da busca por dignidade, as três mulheres trans, Shayane, Brena e Adriana, disseram que estariam mais felizes e teriam um Natal mais tranquilo se pudessem prestar homenagem a uma amiga e “irmã de rua”, a travesti D’Ávila, que foi assassinada, há dois anos, mas está sempre presente no coração das três.

“Nós que somos trans, não importa, é muito difícil. Morreu irmãs da gente de rua. Eu quero aproveitar esse momento para homenagear uma pessoa que se chamava D'Ávila, ela andava sempre com a gente. Ela foi morta no último pré-carnaval, em Fortaleza”, diz Shayane.

“A D’ávila era nossa irmã de rua, era uma bixa maravilhosa, que dava amor e carinho para a gente.Tem muitas pessoas que passam na rua e jogam pedra na gente. Eu queria apoio, queria portas de empregos para as travestis não precisarem se submeter as cafetinas”, complementa Brena.

Essas mulheres costumam viver entre pousadas de assistência e entidades que fornecem refeições sociais. Também estão sempre atentas a algo que possa modificar a realidade delas. Brena é enfática quando diz: “Agora que eu tenho 18 anos. Eu busco cursos, e queria ter mais apoio. Queria que alguém abrisse portas de empregos para que as travestis não precisassem se submeter às cafetinas”.

Se pudesse pedir algo para o Natal, algo que lhe deixaria profundamente feliz seria ter a mãe longe das drogas: “Eu queria que minha mãe saísse do crack, criasse vergonha na cara, e que ela tivesse amor pelos filhos. Amor ela até tem, mas queria que nossa família estivesse em casa, junta”, comenta.

Com uma viseira na cabeça, que pegou emprestado de Brena para tirar fotos, Shayane diz que seu Natal estaria completo se pudesse ter os documentos de volta. “Eu perdi todos na rua. Só estou com uma xerox da certidão. Eu falei com o cartório no Centro da Cidade, ele disse que tinha que pagar, mas eu não consigo. Sem documento a gente não consegue nenhum remédio no posto”.

Logo que as amigas terminam de falar, Adriana começa a falar. Seu grande objetivo é recuperar o direito de ter uma casa. “Eu estou na rua, porque minha mãe morreu e minha prima não me deixa frequentar a casa que era de minha mãe. É um absurdo, ela não precisa da casa da minha mãe, e eu sou filha única. Se eu pudesse pedir um presente de Natal, isso seria um lar para morar, um cantinho meu”.

 

Dois amigos podem dividir histórias parecidas

Um dos rastros da passagem de facções criminosas nas comunidades é a apropriação das casas por traficantes. É assim que contam os amigos Cássio e João. Os dois estão em situação de rua, e antes disso não se conheciam. “Onde eu morava a facção tomou, pediram para eu me batizar, mas eu não quis. Eu fui embora de onde eu estava, senão eu morreria. Agora, eu moro na rua. Esse ano não está muito bom”, conta Cássio.

João compartilha uma história de vida semelhante a do amigo. “As facções também tomaram minha casa. Eles entraram na minha residência, e me mandaram embora, atirando nos meus pés. No dia em que eu voltasse, eu morreria, foi o que eu ouvi”. Ele finaliza: “Facção criminosa, perigosa!”.

A confraternização de Natal e os momentos de cuidados no Centro aqueceram a esperança dos dois, que mesmo com as dificuldades carregam sonhos. “Se não fosse isso aqui, nós estaríamos piores. Se eu pudesse pedir algo de Natal seria, com certeza, uma companheira boa”, brinca João.

“Antes eu morava sozinho, mas hoje moro na rua. Eu ainda tenho um sonho, esse sonho é poder rever minha filha. Ela fica em um lugar distante, e eu não posso ir, porque é caro”, finaliza Cássio.

*Os dois últimos personagens tiveram seus nomes mudados para proteção pessoal.

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