46% dos homicídios contra vítimas vulneráveis em Fortaleza não têm suspeitos, diz pesquisa

Maioria das vítimas analisadas na pesquisa são jovens, homens, negros e moradores da periferia. Relatório apontou falhas nos inquéritos que investigam esses crimes e emitiu 13 recomendações à Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social

20:47 | Out. 26, 2021

Por: Mirla Nobre
Foto de apoio ilustrativo. No total, Estado registrou 276 assassinatos em fevereiro deste ano (foto: Aurélio Alves/O POVO)

Um estudo inédito elaborado pela Rede Acolhe, projeto da Defensoria Pública Geral do Ceará (DPCE) que lida com vítimas de violência, revela falhas nos inquéritos de vítimas mais vulneráveis de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs) em Fortaleza. Na pesquisa “Em busca de Justiça", divulgada nesta terça-feira, 26, dos 180 casos atendidos pelo programa da Defensoria que foram analisados, 46% apresentaram ausência de suspeitos para os homicídios.

O relatório da Defensoria também denuncia ainda a anexação de documentos e fotos ilegíveis aos processos, falhas de comunicação entre as delegacias e até erros em intimações que fazem as peças tramitarem em ritmo lento e até mesmo ficarem paradas por tempo indeterminado.

De acordo com a defensora pública Lara Teles, coordenadora do estudo da Rede Acolhe, a lentidão e as falhas dos inquéritos remetem a dois principais fatores: ao volume de casos e à necessidade de investimentos em provas técnicas mais confiáveis, como perícias balísticas, exames laboratoriais, entre outros.

“Tem investigação muito centrada em prova testemunhal. Tem caso que não há retorno da Perícia porque não tem perito suficiente. Tem caso em que os autos citam câmeras, e as imagens não são anexadas. Tem processo que só a família da vítima foi ouvida. Tem caso que a Polícia não cumpre as diligências do Ministério Público. E, historicamente, preferiu-se investir em policiamento ostensivo. Mas temos que fortalecer a Pefoce (Perícia Forense do Estado do Ceará) e as delegacias especializadas”, explica a defensora.

O estudo foi elaborado pela equipe do Acolhe com auxílio da Assembleia Legislativa, e 13 recomendações, que podem ser verificadas no final desta matéria, foram expedidas à Secretaria Estadual da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).

As recomendações indicam melhorias para aprimorar o cenário investigativo da Capital cearense, cujo desempenho é, segundo o relatório, influenciado até pela região da cidade na qual o crime foi cometido, sendo os territórios periféricos aqueles com menores resultados.

Segundo Lara, o sistema precisa de mudança. “O sistema tem que mudar, porque se você perde um parente hoje e não é uma pessoa rica vai penar para ter o mínimo de investigação. Todo mundo fica chocado com a demora do caso da Marielle, mas esse é um caso que tem muita investigação e provas. Se a Marielle fosse fortalezense, pobre e gay, só teriam sido ouvidas a mãe, a irmã e a companheira dela”, aponta a defensora.

Perfil recorrente

Na pesquisa, os 180 casos analisados de Fortaleza tiveram 191 pessoas mortas, e o perfil preponderante é de jovem (56%), do gênero masculino (82%), negro (80%) e morador de periferia (98%). Só em 2019, ano no qual os processos foram retirados de maneira aleatória para o estudo, o Ceará registrou 2.257 vítimas de homicídio doloso, quando há intenção de matar.

Além disso, a baixa escolaridade também é um dado relevante: 82% das 191 vítimas das ocorrências analisadas eram analfabetas ou tinham estudado somente até o ensino médio, com alto abandono dos estudos ainda no ensino fundamental (47%). “A violência letal é um dos indicadores mais perversos da segregação social no Brasil”, pontua o documento, que classifica a educação como “um fator protetivo”, pois “o jovem se torna mais suscetível quando se afasta da escola.”

Outro dado preocupante está relacionado com o fato de 36% das vítimas terem deixado filhos. O cenário pode ser ainda mais preocupante porque 56% dos processos analisados não continham informações sobre o assunto.

O caso reforça um dos principais argumentos do estudo: “Os dados não representam apenas números. Tratam-se de vidas abreviadas de forma violenta e que deixaram como sobreviventes seus familiares e amigos. Embora tenha havido redução em 2019, os registros de mortes violentas ainda são muito elevados no Estado”.

Por fim, uma das conclusões da pesquisa da Rede Acolhe é a de que “a resposta das instituições estatais é lenta diante da vontade das famílias por justiça, gerando, em muitos casos, um sentimento de revolta e de insegurança”. O relatório destaca ainda que “a angústia dos familiares das vítimas toma uma proporção maior quando a investigação não avança e nenhuma resposta se concretiza na responsabilização do autor do crime, intensificando, em muitos casos, o medo, o silêncio e a indignação.”

Dados da violência no Ceará

Criada em julho de 2017, a Rede Acolhe existe para dar assistência a familiares de vítimas e vítimas sobreviventes de atos de violência. Naquele ano, o Ceará havia registrado 5.133 Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs).

No período seguinte, 4.518 casos. Em 2019, 2.257. Em 2020, 4.039 ocorrências. Neste ano, de janeiro a maio, o estado acumula 1.324 registros de homicídio doloso, feminicídio, latrocínio (roubo seguido de morte) e lesão corporal seguida de morte. Os dados constam em boletins da SSPDS.

Conforme o coordenador do projeto, defensor público Leonardo Fulgêncio, a Rede Acolhe desempenha um papel extremamente relevante, especialmente nos dias atuais.

Já a titular do projeto, a defensora pública Gina Moura classifica a iniciativa como “algo que preenche uma lacuna de assistência jurídica que todas as defensorias do Brasil precisam enfrentar”. Ela afirma que o público atendido pela Rede Acolhe, majoritariamente composto por mulheres, em geral não é ouvido nem tem acesso à Justiça garantido. 

“Estamos diante de números de violência letal alarmantes. Nós precisamos atender a esse público, porque é um público de necessidade muito específica e é muito invisibilizado. É um público que não é ouvido como deve ser", pontua Gina.

Procurada, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) disse não ter recebido o relatório mencionado em tempo hábil.

Confira a nota, na íntegra:
"A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS/CE) informa que não recebeu o relatório mencionado em tempo hábil para que fosse possível analisar os dados apresentados e se eles condizem ou não à realidade das investigações desenvolvidas.

Entretanto, a pasta esclarece que a Polícia Civil do Estado do Ceará (PC-CE) mantém um comitê de estudo permanente com o objetivo de desenvolver procedimentos para a modernização da instituição. Entre as ações desenvolvidas está o projeto de criação da Central de Procedimentos Digitais da PC-CE, em fase de implantação. Além da modernização, a Polícia Civil atua na qualificação dos policiais civis e das investigações desenvolvidas. Cursos de especialização são realizados, além do intercâmbio de conhecimento com outras forças policiais. A PC-CE ainda esclarece que está com concurso em andamento para ingresso de novos escrivães e inspetores, o que colaborará para o fortalecimento do trabalho investigativo.

Por fim, a Perícia Forense do Estado do Ceará (Pefoce) está com concurso em andamento para aumentar seu quadro de servidores em 40%, ainda no primeiro semestre de 2022. A vinculada mantém a qualificação constante do seu corpo técnico, com cursos e intercâmbio de profissionais, o desenvolvimento de novas metodologias, novas técnicas e atualização de conhecimentos, visando realizar um maior número de perícias e de forma mais precisa. Também foram adquiridas novas viaturas e realizada a abertura de novos núcleos equipados, expandindo a atuação da Pefoce no Estado. A compra de novos equipamentos tecnológicos é constante na área pericial."

Confira as recomendações feitas às SSPDS:

  • Virtualização dos inquéritos policiais;
  • Fortalecimento da Perícia Forense: contratação de novos profissionais e melhor instrumental;
  • Estruturar protocolo interno de fluxo dos processos para melhoria das investigações;
  • Fortalecimento do Núcleo de Inteligência da Polícia Civil;
  • Apreensão das câmeras de segurança do local do crime em prazo razoável;
  • Melhor escaneamento das fotos do local do crime;
  • Treinamento da Polícia Civil e estabelecimento de protocolos para familiares das vítimas;
  • Melhorar comunicação entre delegacias;
  • Estabelecer controles mais rígidos sobre o cumprimento de prazos do Judiciário;
  • Tornar obrigatório o pedido de perícia em celular em caso de apreensão de aparelhos;
  • Incrementar as equipes das delegacias especializadas, principalmente DAI e DHPP;
  • Criar fluxo mais claro entre autoridades policiais e Pefoce;
  • Reafirmação da DHPP para realização de recognição visuográfica de local de crime.

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