Mulheres alimentam famílias com restos de comida jogados no lixo

Com perda de fonte de renda e responsabilidade pela alimentação dos membros da família, mulheres recorrem ao lixo de um supermercado no bairro Cocó

 Acordar cedo, sair de casa e ir para a saída dos fundos de um supermercado esperar o momento em que o caminhão da coleta de lixo vai passar. Assim que o carro chegar, ser ágil e pegar a maior quantidade de comida que conseguir antes que os restos jogados fora pelo supermercado toquem o lixo que já está no caminhão. O objetivo é escolher os melhores produtos, que ainda possam ser comidos, para levar para casa e alimentar a família.

Essa foi a rotina de Lúcia Polino da Silva, 63, nos últimos oito meses. No dia 28 de setembro, ela e outras mulheres buscavam algum alimento no caminhão de lixo quando foram filmadas. O vídeo repercutiu na internet e chamou atenção para a realidade de famílias que precisam recorrer ao lixo de um supermercado para conseguir driblar a fome em Fortaleza.

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“Eu trabalhei de lavadeira por mais de 10 anos na casa dessa minha patroa. Depois dessas doenças aí ela me afastou, porque ela já é idosa e eu também sou de risco. Mas para mim não viver só pedindo, nós começamos a frequentar isso aí”, explica Lúcia. A mulher ajudava a sustentar filhos, netos e bisnetos com o dinheiro que conseguia lavando roupas. Com a pandemia e o afastamento do emprego, o alimento da família precisava vir de outra fonte.

Além dela, outras pessoas da família acompanhavam a busca por comida nos fundos do supermercado. “Quando a gente via que não tinha nada dentro de casa, era o jeito de a gente ir. Era minha filha, o marido dela, o meu marido, todos quatro parado dentro de casa”.

Os alimentos encontrados nem sempre conseguiam ser limpos e preparados. “Era café misturado com sabão, com detergente, com kiboa. Eles derramavam os danones pra gente não pegar. O que dava pra nós aproveitar, nós aproveitava”. Lúcia conta que para limpar algum cheiro ruim das carnes, escaldava os pedaços, tentava lavá-los, mas às vezes não tinha jeito. “Bota pro cachorro que não presta pra gente comer”, resolvia.

Por ser diabética, manter a saúde também é uma das principais preocupações de Lúcia. Com a ajuda que vem recebendo por meio de doações e dos filhos que já conseguiram voltar ao mercado de trabalho, Lúcia tem conseguido comer arroz integral e diz que deixou de comer pães. Ainda assim, muito da dieta passada pelas médicas que acompanham o caso dela no posto de saúde continua inviável para sua situação de vida atual.

“A doutora passou pra eu comer só peito de frango, filé de peixe, só que as coisas caríssimas, como é que eu ia comprar essas coisas? Cansei de falar pra ela que eu não tenho condição de comprar nada disso”, diz.

“Se eu tivesse um meio de vida, não voltava não”

Sandra Maria de Freitas Anjo, 57, foi outra das mulheres que apareceram no vídeo. Ela conta que nem sempre tantas pessoas ao mesmo tempo tentavam pegar as sobras do supermercado como foi mostrado nas imagens. Segundo ela, a situação piorou durante a pandemia. Porém mesmo antes do coronavírus e da perda dos trabalhos que conseguia como diarista, Sandra já buscava os alimentos em diversos supermercados para alimentar os seis filhos durante anos.

 Sandra Maria de Freitas Anjo, 57 anos
Sandra Maria de Freitas Anjo, 57 anos (Foto: Yago Albuquerque / Especial para O Povo)

“Na pandemia parei totalmente. Elas [as empregadoras] não quiseram mais. Fiquei sem trabalhar, parada. E aí fiquei indo no mercantil, porque eu não ia passar fome”, relata. Sandra explica que conseguiu o Auxílio Emergencial dado pelo Governo Federal. No entanto, problemas com a documentação pessoal fizeram com que ela não conseguisse retirar algumas parcelas do dinheiro.

O valor que conseguiu acessar serviu para comprar um fogão usado e um botijão de gás, além de outros itens para a casa em que mora. Antes a mulher recorria ao álcool para acender o fogo que esquentava os alimentos. Agora, para continuar conseguindo comprar o gás, o esposo de Sandra também sai para pedir esmolas próximo da comunidade onde moram. Sandra também tem conseguido ajuda, como cestas básicas, depois que o vídeo viralizou, mas ainda não conseguiu sair da situação de insegurança alimentar.

“Eu tenho que voltar [para o supermercado], porque eu não tenho da onde tirar. Agora se eu tivesse um meio de vida, eu diria que não voltava não. Mas eu não tenho, ele [marido] também não tem. Então a gente vive dessas esmolinhas dele e do meu mercantil. Se a gente não for, a gente vai passar fome. Aqui não tem quem dê nada a ninguém não”, afirma.

Pelo menos 10 famílias dependem de restos de comida descartados, segundo Cufa

Francisco Nunes da Silva, voluntário da Central Única das Favelas (Cufa) na Comunidade do Trilho, localizada na fronteira dos bairros Aldeota e Cocó, afirma que a organização localizou pelo menos 10 famílias que apareceram no vídeo procurando alimentos descartados.

. Antônia Eunice Monteiro, 74.
. Antônia Eunice Monteiro, 74. (Foto: Yago Albuquerque / Especial para O Povo)

Além das pessoas que apareceram no vídeo, outras mulheres da comunidade ainda procuram o local, mas não estavam no supermercado no dia da gravação das imagens. É o caso de Antônia Eunice Monteiro, 74. A mulher estava se recuperando de um ataque do coração que teve enquanto procurava a comida no lixo. O problema de saúde fez com que ela deixasse de frequentar o local, passando a receber ajuda para se alimentar dos próprios vizinhos.

Segundo Nunes, como é conhecido na comunidade, a Cufa tem ajudado a arrecadar doações de cesta básica e de cartões com limite de crédito de 64 reais para que as famílias possam comprar comida. Lúcia e Sandra são duas das beneficiadas. Nunes também tem coordenado doações de pessoas que se sensibilizaram pelo vídeo e decidiram ajudar as famílias da comunidade.

Para quem deseja ajudar as famílias da comunidade, o contato do representante da Cufa na região é (85) 99738-7546.

> Leia mais: Na periferia, insegurança alimentar aumenta a vulnerabilidade de mães e crianças

Insegurança alimentar no Ceará

De acordo com dados do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), em 2019, pelo menos 10,2% dos domicílios sofriam insegurança alimentar grave - quando os membros de uma família passam períodos sem alimentos, em situação de fome. Outros 10,95% sofriam com insegurança alimentar moderada e 27,21% passavam por insegurança alimentar leve.

Em uma pesquisa de 2021 a nível nacional, foi registrado que do total de 211,7 milhões de brasileiros, 116,8 milhões conviviam com algum grau de insegurança alimentar. Os dados foram colhidos durante a pandemia pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).

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