Após um mês, família relembra dia que feirante foi morto na José Avelino
Polícia concluiu que disparo que matou o feirante foi oriundo de arma de fogo. Irmão, mãe e esposa de Naison pedem respostas e justiça para o feiranteHá um mês, no dia 18 de agosto, Naison Abdenego de Sousa, 31, saiu de casa para ir pela última vez à feira onde cresceu trabalhando com a mãe. Nesse dia, o feirante acabou sendo morto em meio a um confronto da Guarda Municipal e comerciantes do Centro de Fortaleza. Ainda não há resposta sobre quem matou Naison. A família dele, que também ganha o sustento com as vendas na feira, voltou ao local para trabalhar mesmo com a ausência dolorosa do feirante.
“É doloroso, é uma coisa que vai marcar a gente pro resto das nossas vidas e infelizmente tem que voltar para trabalhar”, diz Francisco Gledson de Sousa Barros, 37, irmão da vítima. Gledson conta que Naison era querido por todos na feira e muitos comerciantes se sensibilizaram com a dor da família. Alguns ofereceram doações, mas a família não aceitou.
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Depois da morte de Naison, a sua esposa, Maria Cristina da Silva, 23, não conseguiu passar muitos dias trabalhando no local. “Quando eu tava lá tudo bem. Mas quando eu chegava em casa voltava toda a cena de novo. Aí eu preferi não ir”, relata ao O POVO durante entrevista feita na sala do advogado contratado pela família para lidar com o caso. “Você tá ali vendo o canto que ele trabalhava e ele não tá mais ali. Isso é constrangedor pra mim”, completa Gledson.
A mudança na rotina da mãe ainda não foi bem assimilada por Ályka, 5 anos, filha de Naison e Maria Cristina. A menina ainda pergunta se Cristina vai para a feira toda vez que é colocada para dormir, pois era o momento em que os pais saiam para trabalhar durante a madrugada inteira. “Ela morre de medo de eu sair e não voltar mais, igual o pai dela”, diz Cristina.
O irmão lamenta pela falta e “vazio” após a morte de Naison nos meses em que eles mais trabalhavam juntos, de outubro a dezembro, quando as vendas são melhores. “Desde criança a gente se entende como feirante. A gente cresceu com isso de tá na feira, não importava a hora, era de madrugada, de dia, de noite, qualquer hora que tivesse feira a gente tava lá pelo ganha pão”.
Além dos planos da família de feirantes para o fim do ano, Gledson lembra dos sonhos interrompidos de Naison. “Ele tinha planos de crescer, de ter seus ideais, de conseguir as coisinhas dele, tinha o plano de comprar o carrinho dele, a casinha própria. Foi frustrado, infelizmente”.
Naison foi levado ao hospital pelos familiares ao ser baleado
O dia em que Naison morreu não foi o primeiro com ações violentas da Guarda contra os feirantes. Segundo Gledson, nas duas feiras anteriores, os agentes estavam fazendo a retirada dos comerciantes do local “com bala” de armas não letais. Ele afirma que a maioria dos trabalhadores guardaram suas mercadorias e acabaram a feira. No dia 18, no entanto, a reação foi diferente.
“Como os ânimos estavam exaltados, uns feirantes mais alterados questionavam a saída. E aí foi quando houve os tiros de borracha, e aí começou a revolta dos feirantes”, relata. Gledson conta que diferente de outros momentos de confronto, o irmão decidiu chegar mais perto para ver o que estava acontecendo. “Toda vez que tinha esse tipo de confusão, ele ia embora mais cedo”.
Até então, naquela madrugada Cristina e Naison estavam tentando vender a mercadoria no local. Depois da chegada dos agentes, os dois guardaram a maior parte dos produtos e ficaram apenas com sacolas, ainda tentando fazer vendas. “Depois os feirantes vieram de novo falar pra gente recolher a mercadoria, aí a gente foi e guardou. Ele falou que ia olhar o confronto”, diz Cristina.
Gledson acompanhou o irmão, mas acabou o perdendo de vista no meio da multidão que se formava perto da feira conhecida como Buraco da Gia. “Foi quando começaram a dizer ‘rapaz, tão dando tiro de verdade’ e todo mundo correu. Eu procurei ele e não vi. Quando eu ia voltando eu vi a negrada arrastando uma pessoa. Eu fui ver quem era e era ele. Aí entrei em desespero”.
Cristina acabou sabendo que Naison tinha sido baleado depois de correr do local em direção à Praça dos Leões. Ela conta que um feirante assistia a um vídeo de uma pessoa ferida sendo arrastada. No momento em que reconheceu o marido na filmagem, Cristina correu tentando encontrar Naison e Gledson. Os três entraram no carro de um dos comerciantes e foram ao Hospital Instituto Doutor José Frota (IJF), onde Naison não resistiu aos ferimentos e morreu.
Outro feirante foi baleado durante o confronto
Além de Naison, Mateus Medeiros Oliveira, 21, acabou sendo baleado, mas sobreviveu. De acordo com a advogada de Mateus, Lays Costa, o feirante “mantinha distância das autoridades de segurança e não portava qualquer instrumento capaz de lesionar”. Lays afirmou ao O POVO que imagens de câmera de segurança mostraram a distância de mais de um quarteirão entre Mateus e os guardas.
A advogada declarou ainda que as imagens registraram “de forma muito nítida que a origem dos tiros se deu de forma unilateral pela Guarda Municipal” e que as investigações, até o momento, não identificaram nenhum civil armado no local.
Mateus foi procurado pela reportagem, mas preferiu falar apenas por meio de sua advogada. A bala que o atingiu continua alojada em seu corpo. O feirante segue “sem conhecimento das lesões e consequências que o objeto irá lhe causar, já que não possui plano de saúde e até então o médico não informou se realizará cirurgia para retirada”, como comunicou Lays Costa por meio de nota.
Família espera inquérito ser concluído e pede justiça
O caso está sendo investigado pela 4ª Delegacia do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). Conforme nota da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), a Perícia Forense já finalizou o laudo de exame cadavérico e o laudo de balística. Neste sábado, 18, a SSPDS informou que o disparo que atingiu Naison foi oriundo de arma de fogo.
Um processo de sindicância investigativa também é realizado pela Corregedoria da Guarda Municipal, ligada à Secretaria Municipal da Segurança Cidadã (Sesec) de Fortaleza. O órgão informou por nota que a apuração administrativa dos fatos também não tem um prazo para ser concluída.
“A gente quer justiça pelo nosso irmão. Pra que isso não fique impune, que não caia no esquecimento. Que essa pessoa pague pelo que ela fez pra que ela não faça outra família passar pelo que a gente tá passando, porque é um momento difícil”, pede Gledson.
Evenia Maria Batista de Sousa, 62, mãe de Naison, também pede por justiça e diz esperar que o autor dos disparos se arrependa da ação. “Eu não sei quem foi que tirou a vida do meu filho, mas se essa pessoa chegar a nos ouvir, eu quero que ele saiba que eu faço é orar por ele, para que Deus venha trabalhar na vida dele. Eu não tenho raiva dele, eu tenho é dó. Eu vou orar pra Jesus libertar ele. Só isso”.
Prefeitura analisa dados de feirantes colhidos após o confronto
Após o confronto que resultou na morte de Naison e no ferimento de Mateus, um comitê foi instaurado pela Prefeitura de Fortaleza para dialogar com os feirantes da rua José Avelino, onde ocorre a maior parte das feiras da madrugada no Centro. Como primeira ação, o comitê fez um levantamento de dados de 27 de agosto a 16 de setembro com o intuito de contabilizar os feirantes do local e entender o perfil desses comerciantes.
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Na primeira semana, em parceria com a Secretaria de Desenvolvimento Econômico, foram colhidos dados de 2.903 pessoas. Dentre elas, 57% são mulheres com idade de 31 a 45 anos. Cerca de 1.491 entrevistados pela pesquisa comercializam suas mercadorias na avenida Alberto Nepomuceno e 1.053 na rua José Avelino, segundo dados preliminares.
“A partir de hoje nós vamos cruzar esses dados até segunda para apresentar ao prefeito o cenário e tomar uma decisão”, disse ao O POVO o secretário de Governo, Renato Lima, durante reunião do secretariado municipal nessa sexta-feira, 17. A prefeitura ainda não informou quais tipos de ações são pensadas para a feira pelo comitê.
A família de Naison não participou do levantamento. Gledson afirma que as 400 senhas por dia disponibilizadas para os feirantes não eram suficientes, fazendo com que a espera para conseguir uma delas fosse longa. “Não tinha como passar dois dias numa fila pra poder pegar uma senha. A gente não conseguiu se cadastrar não”.
Mesmo assim, o feirante tem expectativas de que a Prefeitura organize a feira do entorno da rua José Avelino para que situações como a da sua família não aconteçam mais. “A gente não tem apoio nenhum da Prefeitura em relação aquela feira. Eles falam que a feira é desorganizada e é, porque não tem quem organize”.
Atualizada às 19h30min
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