Vendedora vítima de racismo na Praia do Futuro conta os dias seguintes ao trauma

No último sábado de julho, a jovem de 22 anos sofreu um episódio de racismo na Praia do Futuro. O caso ganhou repercussão, ela conseguiu a ajuda de um advogado e agora pretende processar a agressora pelo crime de racismo

17:50 | Ago. 27, 2021

Por: Alice Sousa
Erika Born passou por caso de racismo na Praia do Futuro (foto: JULIO CAESAR)

A voz mansa e calma de Erika Born não transparece o trauma vivido pela jovem de 22 anos que sofreu um episódio de racismo publicamente na Praia do Futuro, no último dia 31. Ela trabalha há quatro anos como ambulante no local e foi violentada verbalmente quando abordou uma mesa para oferecer miçangas, material que vende há dois anos naquela área. Depois do ocorrido, ela só conseguiu retornar ao local de trabalho três dias depois. Foi quando percebeu que não tinha superado o trauma do episódio. Ao abordar uma mesa, como de costume, começou a chorar copiosamente e teve de encerrar o expediente mais cedo. “Não sei explicar, todos eram brancos na mesa, me deu uma insegurança tão grande que eu saí chorando”, comentou.

Na semana que sucedeu o fato, o caso ganhou repercussão, e ela recebeu várias propostas de advogados que se ofereceram para entrar no caso com ela. Atualmente, está entrando em processo por racismo contra a agressora.

O POVO - Qual foi o contexto da agressão verbal?

Erika Born - Tudo começou quando fui argumentar meu trabalho nas mesas. Estavam ela e o marido em uma mesa e três adolescentes na outra, juntos, mas em mesas separadas. Como meu público é muito jovem, eu sou acostumada a argumentar do meu jeito. Uma das moças se interessou pelo meu acessório e perguntou o valor. Aí eu falei, é R$ 15, ao que ela respondeu dizendo que era muito caro e que se eu quisesse, ela pagava R$ 5. Eu já me senti ofendida na hora, ela estava desvalorizando o meu trabalho. Aí eu falei: "Moça, não existe coisa cara, existe não tenho dinheiro", no mesmo nível de tom. Ela respondeu: "Eu não tenho dinheiro? Estou aqui luxando, e você preta véa? O que é isso na sua mão?" Foi quando o marido dela me disse para ir embora porque eles não iam comprar nada. Quando eu estava me virando para ir embora, ela se levantou de uma vez, pegou um punhado de areia e jogou no meu rosto. Automaticamente, soltei meus objetos e joguei areia nela. Ninguém esperava aquela atitude. Eu não esperava aquilo, minha única reação foi virar o rosto e fechar os olhos. Ao redor de onde ela estava tinham muitas famílias, muitos turistas. Quando o marido dela foi me afastar, eu caí. Foi aí que ela começou a falar: “Sua macaca do cão, sai de perto de mim”. Foi aí que os ambulantes e alguns clientes chegaram a pegar objetos para agredí-la. Eu fiquei tão impactada, sem acreditar…

OP - Essa foi a primeira vez que alguém a agrediu verbal e fisicamente por racismo. Como você se sentiu naquele momento?

Erika - Na forma que ela me tratou, era muito nítido que ela tinha costume de tratar pessoas daquele jeito, e por isso fica e não pode ser assim. Eu sei a forma como abordei. Eu fui educada, mostrei meu trabalho como faço há quatro anos. Ela não chegou a me pedir desculpas e perdão, não vi empatia, só frieza e a certeza de que ela não queria ser atendida por uma pessoa negra, independente das circunstâncias. Talvez não tenha nem sido meu produto, foi a minha cor que a incomodou. E ela confirmou na minha frente que aquilo era normal para ela, repetir novamente. Eu nunca tinha passado por uma situação como essa. Claro, racismo é algo que notamos no olhar, mas do jeito que ela expressou isso eu nunca vi. Nem imaginava que existiam pessoas assim.

OP - Você está entrando com processo por racismo contra a agressora. Onde tem conseguido forças para continuar?

Erika - As minhas forças para dar continuidade a esse processo foram os outros ambulantes da praia que me apoiaram, é uma família em todos os sentidos, e 80% são pessoas negras. Turistas me abraçaram, me dizendo que eu tinha que recorrer e aquilo não podia ficar assim. Recebi muitas mensagens de pessoas que não me conheciam me dizendo pra não deixar isso passar e eu percebo que tenho que ter essa voz, porque o problema das pessoas é isso, tudo deixar pra lá. Se não for eu, amanhã vai ser outra pessoa. E era uma mulher bonita, bem parecida, sabe? Ela não tentou falar comigo pra pedir desculpas em nenhum momento, pelo contrário. Ela quis discutir com minha mãe na delegacia, até os policiais comentarem sobre a atitude dela.

OP - Como esse episódio afetou você?

Erika - As pessoas não sabem como anda o seu emocional e sua estrutura. Eu só fui forte para correr atrás porque tive apoio e encorajamento. Eu não acho justo ela ter destruído o meu emocional e continuar vivendo a vida dela. Ela precisa pagar pelo que fez. Em pleno século XXI passar por situações como essa, é revoltante. Todo mundo precisa se conscientizar. Eu encorajo as pessoas a irem atrás de denunciar, porque nossa cor é linda. A atitude dela foi horrível. Eu moro sozinha, e minha mãe tem se preocupado muito comigo por isso, mas acredito que vou precisar de tratamento psicológico. Tenho medo de me maltratar psicologicamente relembrando as palavras. Eu recebi muito apoio, muito mesmo. O dono da barraca chegou pra mim e me deu forças na ocasião. Foi muito nítida a raiva dela contra mim.

A minha mãe me liga de cinco em cinco minutos, chorou bastante. Disse que era pra ser ela e não eu, porque ela era mais forte e tinha medo da minha estrutura emocional, mas são tantas pessoas me dando forças, me sinto tão apoiada que não acho justo deixá-la impune. Outros ambulantes já sofreram racismo na praia, já vi pessoas chorando na praia porque os clientes falaram que não queriam ser atendidos por pessoas negras. Às vezes a gente pensa que não teremos voz, porque geralmente são pessoas com mais condições que nós. Meu pai me disse pra eu me preparar psicologicamente porque essa podia não ser a primeira vez, mas acredito que só estou lidando bem com a situação por conta da força que recebi.