Veterinários relatam aumento de reações alérgicas graves após vacina contra calazar
Pelo menos sete casos de cães com reações adversas graves após vacinação contra o calazar foram identificados por veterinários de Fortaleza entre abril e maio deste ano
12:13 | Jun. 16, 2021
Pelo menos sete casos de cães com reações adversas graves após vacinação contra o calazar são relatados por veterinários de Fortaleza. Inchaço no focinho, vômito, crise de urticária e até dificuldade para respirar foram alguns dos sintomas apresentados pelos animais após a injeção. Um aumento súbito desses efeitos alérgicos foi identificado entre abril e maio deste ano pelos profissionais.
Sob anonimato, O POVO ouviu quatro veterinários com atuação na Capital que descrevem aumento das reações alérgicas recentemente, após aplicação da vacina Leish-Tec. O produto é o único aprovado pelo Ministério da Saúde e pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) para a prevenção da leishmaniose visceral canina, mais conhecida como calazar.
As ocorrências estão relacionadas a dois lotes da vacina. De um total de sete casos com reações adversas graves, três foram de animais que receberam doses do lote 023/20, outros quatro receberam doses do lote 035/20. Os profissionais suspeitam de um possível problema de controle de qualidade ocorrido durante a fabricação.
A Leish-Tec está há mais de 10 anos no mercado e é fabricada pela Ceva Saúde Animal. O laboratório orienta a vacinação em cães a partir de 4 meses de idade, com três doses da vacina em intervalos de 21 dias entre as doses. A revacinação é anual e cada dose custa em média de R$ 160 a R$ 180.
Segundo profissionais da veterinária ouvidos, reações à vacina são comuns, contudo, geralmente não passam de febre, dor local e apatia transitória. No entanto, nos últimos meses veterinários perceberam um aumento repentino das reações graves.
Uma das fontes relata dois casos ocorridos em abril com intervalo de dois dias. Os dois cães foram vacinados com doses do lote 023/20. Na primeira situação, o animal teve uma reação mais forte, com vômito após a injeção, seguido de inchaço no focinho e dificuldade para respirar.
O cão precisou entrar em terapia intensiva, sendo tratado com soro, anti-histamínico, corticóide e adrenalina devido ao risco de edema pulmonar e de glote. Com a medicação, o animal conseguiu se recuperar.
No segundo caso, depois da aplicação da vacina, um animal teve uma forte crise de urticária, se coçando a ponto de causar ferimentos. Ele foi tratado com anti histamínico.
“A gente fica naquele receio, entramos em contato com o fabricante e não tivemos uma resposta satisfatória. São dez anos que utilizamos a vacina e nunca tinha acontecido isso. De repente, todo mundo começa a ter [casos de reações adversas graves]”, descreve um veterinário.
O profissional reforça a eficiência comprovada da vacina, aliada indispensável na prevenção ao calazar, mas pontua o temor em relação à falta de explicações por parte do laboratório no que diz respeito a essas reações alérgicas graves recentes.
Uma veterinária identificou três animais com reações alérgicas graves em maio deste ano, todos vacinados com doses do lote 035/20. Um dos cães teve crise de urticária e edema facial, enquanto os outros dois tiveram vômito e queda de pressão arterial. “Qualquer vacina pode causar reações alérgicas, mas são raras. A estranheza foi deixar de ser raro e se tornar comum”, salienta.
Outra profissional relata um caso, também em maio, de um cão que tomou reforço anual da Leish-Tec. Quarenta minutos após a aplicação, o animal apresentou edema no focinho e coceira intensa. Após medicação, o quadro conseguiu ser revertido.
Ainda no mesmo mês, uma cadela teve reação alérgica minutos após tomar a última dose da vacina. De acordo com o veterinário que atendeu o animal, nas duas primeiras doses, o animal não apresentou nenhuma reação, sendo que a última dose foi do lote 023/20. “Recentemente tenho registrado casos de alergia mesmo, vermelhidão, inchaço, coceira e tosse; possível início de edema de glote”, acrescenta.
Veterinários que utilizaram o lote 035/20 da vacina chegaram a contatar a Ceva Saúde Animal para reportar as reações adversas graves e solicitar uma análise de qualidade do lote. O laboratório garantiu aos médicos que o lote foi aprovado para comercialização por apresentar “resultados satisfatórios para todos os parâmetros de qualidade avaliados."
Laboratório garante que vacina não teve mudanças na fórmula
Por meio nota, a Ceva afirma que "conforme previsto em literatura, reações pós vacinas podem ocorrer individualmente, conforme a resposta imunológica do animal vacinado."
A empresa também garante que não houve nenhuma alteração na formulação da vacina Leish-Tec, tampouco em bula, e acrescenta que a mesma está devidamente registrada no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) desde 2007 sob número 9270/2007, conforme estudos e documentos apresentados e aprovados por este órgão regulador nacional.
A Ceva ainda afirma que os clientes podem utilizar o SAC para relato e abertura da ocorrência. Após obtenção das informações relacionadas ao evento descrito e ao produto envolvido, a Ceva explica que oferece suporte técnico para auxílio na condução do quadro, conforme a necessidade.
Além do suporte técnico, o laboratório menciona a disponibilização de materiais informativos e técnicos relacionados aos cuidados pós-vacinais voltados aos tutores e direcionados a médicos veterinários, respectivamente.
"Ainda, salientamos que após a abertura da ocorrência no SAC, os eventos adversos são tratados dentro do sistema de farmacovigilância interna, e que, se procedente, encaminha-se para investigação nos quesitos de qualidade, segurança e eficácia, conforme o incremento verificado comparativamente à média histórica do mesmo", completa a nota.
O POVO questionou a Ceva sobre a existência de investigações em relação à qualidade dos lotes 023/20 e 035/20 da Leish-Tec e pediu um levantamento sobre notificações de efeitos adversos graves relacionados aos referidos lotes da vacina. No entanto, a empresa não respondeu a essas solicitações.
Procurado, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), afirma que não foi notificado de efeitos adversos relacionados à vacina pela empresa, por veterinários ou por tutores de cães. O Mapa diz que realiza fiscalizações em todos os fabricantes de produtos de uso veterinário, incluindo a empresa Ceva Saúde Animal. A frequência varia de acordo com o risco estipulado para cada produto.
Vacina é importante para prevenção ao calazar
Todos os médicos veterinários ouvidos por O POVO reforçam a necessidade da vacinação para prevenir o calazar. Em estudo divulgado pelo laboratório fabricante, a Leish-Tec obteve como resultado 96,41% de proteção contra a leishmaniose visceral canina no grupo vacinado, o que corresponde a 71,3% de eficácia vacinal.
“A vacinação é muito importante e deve ser associada a um repelente tópico. Vivemos em uma área onde ainda existem, infelizmente, muitos casos de leishmaniose”, ressalta uma das profissionais.
Em 2020, de acordo com nota técnica da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), o Estado registrou 135 casos de leishmaniose visceral ou calazar. O número é o menor desde 2007 e representa uma queda de 54% em relação ao ano anterior. No Ceará, de 2007 a agosto de 2020, foram registradas 5.912 confirmações da doença no mesmo período, com uma média de 422 casos ao ano.
A leishmaniose pode ser fatal tanto para animais quanto para seres humanos e é transmitida por meio da picada do mosquito vetor, chamado de flebótomo, que é conhecido por mosquito palha ou cangalhinha.
Cães e seres humanos são infectados pelo mosquito, que transmite o calazar para as pessoas apenas se picar primeiro um animal com a doença. Os principais sintomas nas pessoas são febre, fraqueza, inchaço no abdômen, tosse seca e emagrecimento.
Nos animais, os sinais do calazar são emagrecimento, apatia e feridas na pele que não cicatrizam. O animal infectado precisa ser medicado e receber acompanhamento veterinário a cada quatro ou seis meses. O tutor também pode optar pelo sacrifício do seu animal.