Prefeitura suspende projeto de reconhecimento facial em escolas de Fortaleza

Entidades questionam sobre segurança dos dados de estudantes

A Secretaria Municipal da Educação (SME) informou ao O POVO que "o pregão para aquisição de novas tecnologias de controle de frequência escolar foi suspenso". A tecnologia visava utilizar inteligência para reconhecimento facial, detecção do uso de máscaras e aferição da temperatura de 230 mil alunos em cerca de 570 unidades educacionais da rede municipal. O investimento seria de R$ 21 milhões, tendo como fonte o Fundo Municipal da Educação. Especialistas e comunidades escolar criticaram a estratégia por conta da segurança de dados dos estudantes. 

Conforme a SME, a suspensão ocorre "após a identificação de necessidade de estudos complementares e adequações técnicas para melhor atendimento à finalidade do projeto e tendo em vista a necessidade de incorporar novos elementos, diante da possibilidade de retorno presencial das atividades na rede municipal de ensino apresentada pela equipe de transição".

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Em nota, a pasta destaca ainda que o projeto deve seguir todas as normas legais vigentes, "como sempre foi observado pela SME, bem como as demandas apresentadas pelos órgãos de controle." A SME afirma que o projeto das novas aquisições deverá ser avaliado, neste momento de transição de governo, pela equipe da nova gestão municipal. 

Ontem, o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca-CE) e o  Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social questionaram à SME sobre a justificativa para a medida e qual problema o órgão pretende resolver com a estratégia. As entidades indagaram sobre relatório de impacto de dados pessoais e de direitos humanos com o uso da tecnologia, além da análise sobre potencial discriminação, principalmente, racial e de gênero. Defensoria Estadual, Ministério Público e Conselho Municipal de Educação também foram oficializados.

"O pedido de informações tem como base o artigo 100, inciso V, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), que assegura o direito ao respeito, à privacidade e à imagem dessa população. Além disso, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (13.709/2018) considera a imagem de um indivíduo como um dado biométrico", justificam. 

Violação de direitos


Conforme Marina Araújo, da coordenação colegiada do Cedeca Ceará, o uso da tecnologia de reconhecimento facial tem potencial violador ao direito à privacidade de crianças e adolescentes previsto na Constituição Federal de 1988 no artigo 5º, X, e em diversos tratados internacionais de direitos humanos. A representante afirma que a privacidade e o respeito assegurados aos menores são expressamente previstos no artigo 17, e artigo 100, inciso V, do Estatuto da Criança e do Adolescente, com explícita menção ao seu direito à imagem.

“É importante destacar que os estudos sobre outras experiências com o uso desta tecnologia apontam a ocorrência de ações discriminatórias contra usuários e usuárias, sobretudo com relação às questões de raça e gênero, devido às falhas e imprecisões. Tal situação também pode configurar uma afronta ao artigo 18 do ECA, se crianças e adolescentes vivenciarem situações de constrangimento e discriminação no espaço da Escola”, reitera.

Marina também questiona a prioridade orçamentária ao gastar R$ 21 milhões na tecnologia que ainda não se sabe ao certo que problema busca resolver. “Em vez de investir na necessária melhoria de infraestrutura nas Escolas Pública no contexto sanitário atual”. De acordo com o Censo Escolar 2019, somente 42,4% das escolas municipais de Fortaleza da educação infantil têm infraestrutura de banheiros adequados. A estruturação das escolas públicas em aspectos fundamentais como saneamento básico, inclusive deve ser atendido para cumprir com o Protocolo Setorial nº 18, do Decreto Estadual nº 33.824/2020. 

Segurança de dados

Integrante dos intervozes e professora da Universidade Federal do Ceará, Helena Martins frisa que, desde o estabelecimento dessas políticas de reconhecimento facial, cresce em todo o mundo críticas que pedem moratória da adoção dessa política e outras classificadas como vigilantistas. O movimento é para que a sociedade debata e estude os efeitos e formas de controle social.

“Ao contrário, o que nós temos visto aqui no Ceará, como expressa bem a proposta da prefeitura de Fortaleza,é uma utilização sem debate público, sem legislação que trate do tema e por meio de procedimentos simplificados que, inclusive, sequer beneficiem o debate público e a concorrência”, opina Helena, coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Políticas, Tecnologia e Economia da Comunicação (Telas).

A docente cita ainda pesquisa do doutorando, Tarcízio Silva, da Universidade Federal do ABC, que demonstra problemas na concepção das tecnologias. As incoerências têm sido chamadas de vieses algoritmos, que podem não apenas perpetuar preconceitos da sociedade, mas difundi-los. Outro aspecto apontado é a dificuldade desses sistemas de identificar pessoas negras e asiáticas.

“Desde a escolha de como e onde adotar tem questões de raça e classe que se estabelecem. Eu duvido que algo do tipo fosse adotado em escolas particulares. Há imposição por parte do Estado sem diálogo real com a comunidade escolar, pais, servidores e com os próprios estudantes”.

Helena resgata que na cidade de São Francisco, nos Estados Unidos, foi proibido a utilização de reconhecimento facial. O local é o berço tecnológico mundial, casa do Vale do Silício. "O fato de nossos dados serem coletados todos os dias não deve nos levar à naturalização da prática. Ao contrário. Em todo o mundo também tem crescido o debate e a afirmação do direito à proteção de dados pessoais.”

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