Fortaleza teve quatro mulheres trans assassinadas em apenas 28 dias
Crimes ocorrem em ano de escalada da violência no Ceará. Só nos primeiros quatro meses, 64 pessoas trans foram assassinadas no PaísTrês mulheres transexuais e travestis foram mortas em Fortaleza dentro de uma semana. Em 28 dias, chegou a quatro o número de corpos trans encontrados mortos na Capital, conforme denuncia a Rede de Observatórios da Segurança. Para pesquisadoras, casos de transfobia refletem ano intenso para a segurança pública no Estado e série de problemas que afetam a população de transexuais e travestis.
O primeiro desses casos é o de Soraya Oliveira, proprietária de salão de beleza, como informou a Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará (Atrac). Ela foi encontrada morta nas proximidades da Lagoa da Maraponga com ferimentos provocados por arma de fogo. Ao lado dela foi encontrado o corpo de um homem. A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) informou inicialmente que as vítimas tratavam-se de "dois homens" não identificados.
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Já neste mês de agosto, no dia 3, uma travesti que não chegou a ser identificada foi encontrada em área próxima ao Batalhão da Polícia Militar Ambiental (BPMA), no bairro Bonsucesso. No dia 8, uma adolescente travesti, de 15 anos, foi vista entrando em um matagal localizado na Granja Lisboa e minutos depois executada a tiros, ainda segundo a Rede de Observatórios. O caso mais recente é de Letícia Costa, de 29 anos. Ela foi atingida com disparos de arma de fogo na rua Jaime Benévolo, no Centro de Fortaleza, na noite da última segunda-feira, 10.
Escalada da violência
Os crimes acontecem em um ano atípico no Ceará quando se fala em segurança pública, como destaca a pesquisadora da Rede de Observatórios da Segurança, Ana Letícia Lins. O primeiro semestre foi marcado pela escalada de homicídios e mortes por intervenção policial. O pico foi de 459 homicídios em fevereiro deste ano, conforme dados consolidados da SSPDS.
"Há diferença nos tipos de mortes violentas quando olhamos caso a caso. A Rede (de Observatórios da Segurança) consegue perceber as nuances de quem está sendo vitimado, os contextos e como estão sendo vitimados", explica a pesquisadora, que também é membro do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC).
"É importante colocar essas mortes dentro de um cenário maior, como o da escalada de violência, mas mortes de pessoas trans precisam ser olhadas de forma mais específica", pondera. Em 2017, ano da morte de Dandara dos Santos, com repercussão internacional, a SSPDS concluiu que não houve nenhuma morte por homofobia em Fortaleza.
Ana Letícia Lins destaca que é necessário questionar o que o Estado tem feito, de forma efetiva, para prevenir casos de violência contra essa população. "A gente fica escandalizado quando vê uma cidade como Fortaleza com quatro assassinatos como esses em 28 dias, e ainda mais porque isso não choca o Governo do Estado a ponto de se posicionar publicamente", pontua.
Outro ponto levantado pela pesquisadora é a dificuldade em obter informações das pessoas assassinadas no Estado. "Normalmente, é mais fácil saber se a vítima tinha antecedentes criminais do que saber o nome ou a cor dessa pessoa", critica. "Há um grande vácuo, muito cruel, que não nos permite traçar de forma mais certeira o perfil das vítimas".
Transfobia no Brasil
Relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) indica que, só em 2019, pelo menos 124 pessoas transgênero, incluindo homens e mulheres transexuais e travestis foram assassinados no Brasil. Isso significa que uma pessoa trans era assassinada a cada três dias no País. No ano anterior, foram registrados 163 assassinatos. Em 2017, foram 179. A diminuição pode não ser exatamente reflexo da redução de crimes, mas de subnotificação.
A situação muda quando entramos no ano de 2020. Ainda segundo a Antra, entre o dia 1º de janeiro e dia 28 de fevereiro deste ano, o aumento no número de casos de assassinatos dessa população foi de 90% em relação aos dois primeiros meses de 2019. O Brasil pulou de 20 notificações, no ano passado, para 38 em 2020. Já no primeiro quadrimestre, foram registrados 64 assassinatos.
Crimes marcados por crueldade
Membro da Rede de Observatórios da Segurança em Pernambuco, a pesquisadora Dália Celeste destaca que a transfobia é evidenciada na forma da brutalidade porque demonstra o "processo de higienização dos corpos". Isso significa que a violência praticada contra a população trans é marcada por vítimas decapitadas, enforcadas ou carbonizadas. Também há registro do alto número de tiros ou facadas deferidos no ato criminoso.
Integrante da Comissão de Gênero e Sexualidade da OAB/PE, Dália lembra casos chocantes que aconteceram só nos últimos três meses, em Pernambuco. Entre eles, uma travesti executada a facadas em um terminal de ônibus e uma mulher trans encontrada morta no banheiro de casa, com fio de TV enrolado no pescoço.
"Mortes de pessoas trans e travestis têm sido naturalizadas na sociedade. São casos frequentes em que não se se vê posicionamento do Estado. A gente não vê processos de proteção para essas pessoas", aponta Dália. "A moça trans encontrada no banheiro de casa foi identificada com o nome antigo, com qual ela não se identificava. Isso prejudica o levantamento das estatísticas".
"Houve um caso em Olinda de uma menina trans que foi agredida pelo ex-companheiro. Ela pediu ajuda aos garis que passavam na rua e eles a espancaram", relata. "Isso só mostra como as pessoas enxergam nossos corpos como pessoas que não são humanizadas, como corpos que se podem bater, que não têm direito à existência".
Dália Celeste, que também é uma mulher trans, afirma que a vítima precisou buscar diferentes centros de atendimentos até conseguir registrar a denúncia de agressão. "Não existe capacitação para os profissionais lidarem com pessoas trans e isso influencia para que as pessoas acabem não denunciando", afirma.
A pesquisadora elabora ainda que a violência contra as pessoas trans é estrutural. "O sistema ensina e reproduz que somos corpos desumanizados. Começa muitas vezes na infância ou na adolescência, quando as pessoas afirmam sua identidade de gênero e são expulsas de casa. As pessoas trans não saem de casa. Elas são expulsas. Ou quando muitas delas não conseguem ter acesso a educação, porque nesse processo já sofrem preconceito e terminam desistindo", explica. "São pessoas que morrem por ser quem são".
Confira nota na íntegra da SSPDS sobre os casos de transfobia em Fortaleza
"A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) desenvolve diversas iniciativas em atenção às políticas públicas voltadas para o público LGBTQI+ do Ceará. Essas ações incluem desde a inclusão do campo para o nome social, orientação sexual e identidade de gênero no registro de Boletim de Ocorrências (BO) por parte da Polícia Civil no Ceará (PCCE); o atendimento nas Delegacias de Defesa da Mulher (DDM), em casos de violência doméstica em que a vítima seja mulher transsexual ou travesti; a inclusão de representantes do movimento LGBTQI+ nos Conselhos Comunitários de Defesa Social (CCDS), vinculados à SSPDS; até a capacitação de agentes de segurança pública na Academia Estadual de Segurança Pública (Aesp).
Desde o dia 28 de junho de 2017, travestis e transexuais passaram a ter a possibilidade de incluir o nome social no registro do Boletim de Ocorrência (BO), no campo “nome social” – conforme Decreto nº 32.226. Os campos "orientação sexual" e "identidade de gênero" foram acrescentados à plataforma SIP3W (Sistema de Informações Policiais – utilizado para registro de ocorrências nas delegacias).
A SSPDS frisa que as iniciativas decorrem de levantamento realizado entre representantes da SSPDS e seus órgãos vinculados, bem como de representantes da Secretaria de Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS) e outros membros de entidades da sociedade civil, como forma de prevenção e combate a crimes de ódio motivados por orientação sexual. Sobre a formação dos servidores para o atendimento das ocorrências, a Aesp realiza seminários temáticos e ministra disciplinas, além de promover capacitações continuadas, que trabalham a atuação do agente de segurança pública no trato de grupos vulneráveis.
A pasta reitera que todos os casos de mortes envolvendo esse público são apurados pela Polícia Civil do Estado. Na segunda-feira (10), a travesti Letícia Costa foi morta a tiros na Rua Jaime Benévolo, no bairro Centro – Área Integrada de Segurança 4 (AIS) de Fortaleza. O caso está sendo investigado pela 4° delegacia do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). No último sábado (8), outra travesti foi morta a tiros no bairro Granja Lisboa (AIS 2). A vítima foi morta por disparos de arma de fogo na Rua Dallas. Somente após exame de DNA da Pefoce é que será possível identificação oficial da vítima. A investigação está a cargo da 2° delegacia do DHPP.
Já o 27° Distrito Policial (DP) investiga também as circunstâncias acerca da morte de uma travesti ocorrida, no último dia 3 de agosto, no bairro Bonsucesso (AIS 6). A vítima foi morta com golpes de faca na Rua Pedro Cardoso Uchôa. A Polícia Civil realiza diligências com o intuito de identificar os suspeitos, bem como descobrir a motivação do fato.
A 9° delegacia do DHPP está com diligências em andamento para capturar os suspeitos já identificados envolvidos em um duplo homicídio registrado, no último dia (12), no bairro Maraponga (AIS 9). Os corpos foram encontrados à margem da lagoa do bairro e apresentavam lesões provocadas por arma de fogo. As vítimas foram identificadas como uma mulher trans Soraya de Oliveira Santiago (35) e Francisco Ediberto dos Santos Brasileiro (39).
É importante destacar também as ações proativas baseadas nas doutrinas do policiamento de proximidade e comunitário, que são realizadas pela Polícia Militar do Ceará (PMCE), nas 15 Unidades Integradas de Segurança (Unisegs) localizadas em Fortaleza, Juazeiro do Norte e Sobral. Outro exemplo é a criação do Programa de Proteção Territorial e Gestão de Riscos (Proteger). Além da instalação dessas estruturas fixas da PMCE, o Proteger realiza o mapeamento de 70 indicadores como renda, saneamento e educação, referentes às áreas críticas de Fortaleza.
O trabalho de atendimento e acompanhamento dessa população conta também com o Grupo de Apoio às Vítimas de Violência (GAVV) da PMCE, que atua de forma preventiva na Capital acompanhando vítimas de violência doméstica. A SSPDS ressalta que mantém o compromisso de prestar atendimento adequado e a devida proteção de todos os grupos vulneráveis, por meio de políticas públicas que assegurem o direito e garantia fundamentais."
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