Existe um método certo de alfabetização?

A polêmica da única metodologia adequada para a alfabetização de crianças começou em 2019, quando o Governo Federal sugeriu no Plano Nacional de Alfabetização que as escolas utilizassem o método fonético
Autor Catalina Leite / ESPECIAL PARA O POVO
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Do beabá à habilidade plena de leitura percorre-se um longo caminho. O processo de alfabetização virou espécie de campo de batalha entre pedagogos e o governo Bolsonaro em 2019, que sugeriu no Plano Nacional de Alfabetização (PNA) o uso da metodologia fônica pelas escolas. É a primeira vez que um PNA recomenda um método específico, além de afirmar que é o único com eficiência comprovada por “evidências científicas”.

No meio da “polêmica” de metodologias de alfabetização, dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes 2018 (Pisa 2018) indicaram que o Brasil segue estagnado na habilidade de Leitura. De 2015 para 2018, o País subiu seis pontos em Leitura (de 407 para 413), o que é considerado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD) como insignificante estatisticamente.

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Ao mesmo tempo, Sobral (CE) registrou o melhor desempenho nacional no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica 2017 (Ideb 2017). O município alcançou a média de 9,1 pontos entre os alunos do quarto e quinto ano do ensino fundamental, enquanto a média dos municípios de todo o Brasil foi de 5,6 pontos.

Segundo a doutora em Educação Ilona Becskeházy, o sucesso de Sobral está justamente no uso de componentes fônicos durante o processo de alfabetização - o “método certo”, como afirma em sua tese de doutorado Institucionalização do direito à educação de qualidade: o caso de Sobral, CE.

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Por outro lado, pedagogas afirmam que a discussão e críticas em relação aos métodos fônico e construtivista - principal alvo de desaprovação do governo Bolsonaro - já foram superadas. Ainda, são metodologias datadas e substituídas por procedimentos focados na alfabetização e letramento.

Os métodos

A pedagoga Mônica Farias Abu-El-Haj explica que o método fônico integra as metodologias tradicionais que já foram utilizadas no Brasil. Ele está baseado no treinamento do aluno a partir de partes pequenas para as maiores. Ou seja: aprende-se o som da letra ou da sílaba para, então, formar palavras.

Entretanto, a metodologia considerava que os alunos só poderiam ter contato com livros nas escolas, por exemplo, quando estivessem alfabetizados. Dessa forma, apesar de as crianças entenderem as regras alfabéticas, elas não compreendiam a funcionalidade social das palavras - atrapalhando na habilidade de interpretação.

Foi então que, na década de 80, surgiu no Brasil o método construtivista, a partir de estudos científicos da pesquisadora Emilia Ferreiro. O construtivismo defende que o aluno deve ser letrado a partir das próprias experiências com as palavras e seus significados. Assim, ele seria estimulado a escrevê-las até encontrar a grafia correta.

Esta é apenas uma exemplificação geral de como funcionam as duas metodologias citadas, já que na prática a aprendizagem perpassa por vários processos de assimilação diferentes.
Esta é apenas uma exemplificação geral de como funcionam as duas metodologias citadas, já que na prática a aprendizagem perpassa por vários processos de assimilação diferentes. (Foto: Catalina Leite/Especial para O POVO)

Com o construtivismo, as salas começaram a ter cartazes nas paredes e momentos de leitura com as crianças, mesmo que ainda não estivessem alfabetizadas. “O problema é que, na época, interpretaram o construtivismo muito radicalmente. Renegaram por completo o método fônico, e as professoras ficaram inseguras, sem saber quais procedimentos [de ensino] aplicar”, afirma Mônica.

A pedagoga reforça que o ensino do sistema alfabético é essencial para que as crianças aprendam a ler e escrever. Isso porque o alfabeto é um sistema criado arbitrariamente, com regras muito abstratas. Nem sempre um fonema (som) corresponde ao grafema (letra). É o caso da palavra casa, em que a letra S tem som de Z. De acordo com a especialista, não é natural que as crianças compreendam sozinhas essas abstrações e princípios alfabéticos.

Mudando o foco

Ao analisar o contínuo “fracasso escolar” aplicando um ou outro método, a comunidade acadêmica passou a compreender os prós e contras deles. Por isso, convencionou-se que o ideal é criar procedimentos para a alfabetização e letramento dos alunos.

A alfabetização foca no aprendizado do sistema alfabético e as regras envolvidas nele. O alfabeto, como explica a pedagoga Mônica, é uma tecnologia ensinada para as crianças a partir de estudos fonológicos - diferente de método fonético -, da área da linguística. Valoriza-se a interação do aluno com a escrita por meio da oralidade.

Já o letramento propõe o contato com a funcionalidade social das palavras, baseado nos estudos da psicogênese da língua escrita. Assim, a criança compreende o porquê de aprender a ler e escrever. Por exemplo, elas são estimuladas a escrever cartas, mesmo sem de fato saberem escrever, a ler livros e a discutir histórias.

É importante ressaltar que a prática do letramento nas escolas é essencial para garantir o acesso de crianças de classes baixas à “cultura letrada”. A pedagoga Adriana Limaverde explica que cultura letrada refere-se às oportunidades de convivência com a escrita que a criança dispõe, auxiliando-a a dar sentido às palavras escritas.

Para a professora Magda Becker Soares, vencedora do Prêmio de literatura Jabuti em 2017, na categoria Educação e Pedagogia, o “foco em métodos de alfabetização é inteiramente equivocado” e “improdutivo”.

“Como se fosse possível haver uma ‘receita’ para os alfabetizadores seguirem, e tudo daria certo. Muitas ‘receitas’ têm sido propostas, cada proponente julgando que a sua é a melhor, a definitiva, e nenhuma até hoje resolveu o reiterado fracasso do País em alfabetizar as crianças”, analisa a especialista em entrevista ao O POVO.

Segundo Magda, o que deveria ser discutido é como a criança aprende. As áreas de pesquisa de teorias do desenvolvimento infantil, psicologia cognitiva, psicogênese, linguística, fonologia e as neurociências já têm investigado a forma da criança aprender.

“O que falta é que os que alfabetizam ou se formam para alfabetizar conheçam não métodos, mas o que dizem essas áreas sobre como a criança aprende, para então definir como ensinar”, defende a autora do livro premiado Alfabetização – A questão dos métodos.

Críticas ao Plano Nacional de Alfabetização (PNA)

No PNA, o governo defende que sugerir uma alfabetização a partir de “evidências de pesquisas” não seria o mesmo que impor um método, mas “propor que programas, orientações curriculares e práticas de alfabetização sempre tenham em conta os achados mais robustos das pesquisas científicas”.

Por outro lado, pedagogas colecionam críticas e ressalvas sobre o plano. Para Magda Soares, o PNA é “antidemocrático e desrespeitoso”, além de desprezar todas as outras áreas de conhecimento que também ofereceram evidências científicas sobre as “facetas do processo de alfabetização”. Ainda, a especialista Adriana Limaverde acrescenta que as escolas devem ter autonomia para decidir quais procedimentos os professores utilizarão para alfabetizar e letrar as crianças.

Além dos pareceres em relação ao posicionamento do governo Bolsonaro, a pedagoga Mônica Abu-El-Haj também menciona a falta de clareza e objetividade do texto. Segundo ela, o PNA utiliza termos ambíguos apenas para evitar nomenclaturas que possam fazer referência ao construtivismo.

“As palavras têm poder”, reforça ao explicar que a descrição das metodologias sugeridas pelo plano correspondem ao que já se aplica nos procedimentos de alfabetização e letramento. Entretanto, a preferência por escrever “método fonético” e derivados remete à metodologias tradicionais criticadas pela ineficácia individual na alfabetização das crianças.

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