Investigações policiais mostram crianças vítimas no contexto de feminicídio no Ceará

Meninos e meninas são inseridos no contexto de violência doméstica e, cada vez mais cedo, tornam-se vítimas com as mães

09:14 | Jun. 26, 2019

Maria Cecília completaria dois anos e foi morta pelo padrasto (foto: FOTO: Reprodução/Facebook )

Após o rompimento de um relacionamento de aproximadamente 10 anos, Ricardo Vasconcelos Silva, de 41 anos, cumpriu as ameaças de morte que fazia à ex-companheira desde o fim da união. Eliene de Oliveira Viana, de 39 anos, foi esfaqueada e morta na noite do domingo, 23, no município de São Benedito, a 318 quilômetros de Fortaleza. Além do feminicídio, o homem é apontado como responsável por esfaquear a ex-cunhada e um ex-enteado, um rapaz de 19 anos. Os familiares sobreviveram.

As investigações da Polícia Civil, que esmiúça os traços do relacionamento de agressor e vítima trazem à tona uma violência que têm se estendido contra os filhos das vítimas.  Os pais e padrastos, que deveriam dar proteção, tornam-se causadores da violência dentro de casa. 

O caso de Eliene possui semelhanças com o crime contra Maria Erisvalda Frota, de 31 anos. Erisvalda e a filha, Maria Cecilia, de apenas um ano e 11 meses, foram mortas no dia 8 de junho, em Itapipoca. Nos dois casos foram utilizadas armas brancas (facas), aconteceram no Interior do estado e os criminosos não aceitavam o fim do relacionamento. A violência estendeu-se contra os filhos das vítimas, enteados dos agressores. Maria Cecília, que ainda completaria dois anos, não resistiu aos ferimentos. Já o filho de Eliene, de 19 anos, sobreviveu à agressão a faca. Ricardo Vasconcelos e Francisco Marlin Oliveira Lima foram presos suspeitos da morte de Eliene e de Erisvalda, respectivamente.

No dia 17 de setembro de 2017, no bairro Sapiranga, em Fortaleza, uma criança de sete anos presenciou a  mãe sendo assassinada e fingiu-se de morta durante três dias para fugir do padastro. O homem cometeu suicídio e os vizinhos, que escutaram o choro e o odor dos corpos, acionaram a Polícia. O menino foi encontrado sujo, com fome e marcas de agressão. O padastro, de 31 anos, tentou matar o garoto por meio de asfixia. O criminoso pensava que a criança estava morta, matou a companheira de 36 anos, que estava grávida, e, posteriormente, tirou a própria vida. A criança passou por atendimento psicológico depois de tudo o que viveu. 

Apesar de ter acontecido no ano de 2015, o caso do gaúcho Marcelo Barbarena, de 39 anos, acusado de matar a esposa, Adriana Pessoa e a própria filha, Jade Pessoa de Carvalho Morares, de apenas oito meses, ainda choca pela crueldade. O crime foi registrado na casa de praia da família do casal, em Paracuru, na madrugada do dia 23 de agosto de 2015. As vítimas foram mortas enquanto dormiam, Adriana Pessoa estava na cama e Jade, no berço, quando foram atingidas pelos tiros. 

Uma das primeiras versões do crime era de que assaltantes invadiram a casa. No entanto, a arma que teria sido utilizada no crime foi encontrada na casa de veraneio. Indícios de que o casal estava em crise após o nascimento da criança e de que Marcelo possuía uma amante aproximavam cada vez mais a Polícia da possível autoria. Houve reconstituição do crime e a Perícia Forense também encontrou contradições na versão apresentada pelo marido. Marcelo foi preso. 

Meninos e meninas no contexto da violência doméstica

Segundo uma fonte da Polícia Civil ouvida pelo O POVO Online, que pediu para não ser identificada, a elucidação dos crimes requer métodos e padrões estabelecidos que fazem com que a investigação adentre na história que cerca os fatos. "Tudo o que há por trás do relacionamento". A intenção é buscar provas que serão levadas ao judiciário.

A questão das crianças no contexto do feminicídio é de que elas estão dentro do universo da violência doméstica e todos que fazem parte das relações interpessoais podem ser vítimas. A criança também torna-se uma vítima da violência doméstica. "A raiva reverbera nas crianças. Reverbera no universo que ele (agressor) está vivendo. Se é um universo familiar vai reverberar na criança, se é de namoro são os amigos. É um ciúme excessivo. Por vezes a criança sofre com essa influência e ela está orbitando entre a situação de violência entre homem e mulher", explica.

A autoridade policial cita, no contexto de especialista em Segurança Pública e de vivência nas delegacias de Polícia Civil, que a violência contra a mulher tem um ciclo de evolução. Após a prisão, a mulher é ouvida e pode voltar atrás nas acusações. Por isso, durante o processo, existe a possibilidade da soltura. "Isso acontece, pois a vítima busca abrandar a violência física ou verbal, seja pelo relacionamento afetivo, por paixão ou medo. Isso é levado em consideração pelo juiz ou promotor, mas na delegacia não tem esse peso", relata. 

 O que fica depois que crescem

Um homem entrevistado pelo O POVO Online teve a mãe morta e o principal suspeito do crime era o pai. O caso aconteceu em Fortaleza e completou 20 anos, no entanto o pai não foi condenado por falta de provas. Ele pediu pra não ser identificado. Na época, a mãe havia separado do esposo e mantinha outro relacionamento. A mãe e o namorado foram executados a tiros dentro de um automóvel na capital cearense. O caso dividiu a família e os filhos.

O filho relata que, durante toda a infância, testemunhava as agressões e as brigas em casa. Quando era criança, os irmãos ficavam parados e observavam a brigas. Na adolescência, eles passaram a tentar impedir. O casal separou-se, mas o pai não aceitava a separação. 

"Eu já sabia que ele tinha o histórico de agressão. A família da minha mãe afastou-se da gente. Hoje consigo conversar com uns tios. Passei oito anos sem falar com meu pai e hoje passei a falar com ele, mas meu irmão ainda não fala", relata.

Para o filho, o maior sofrimento psicológico foi ter presenciado as brigas e os conflitos dentro de casa. "Nós fomos muito marcados por isso", lamenta. 

Crianças que vivenciam violência doméstica podem desenvolver transtornos 

Para o psicológo Allysson Oliveira, as consequências para crianças que assistiram ou foram vítimas de violência doméstica podem vir em curto, médio ou longo prazo. A violência pode acontecer de forma verbal, emocional, psicológica e física.  "Alguns estudos dizem que pode acontecer o transtorno de ansiedade e transtorno da depressão. Dificuldades de relacionamento, comportamentos agressivos, timidez, isolamento social e sintomas físicos como os distúrbios de sono", explica.

Allyson diz que crianças e adolescentes vivenciam essas situações de maneira diferente. Algumas vão se sobrepor às dificuldades a partir da resiliência. "O que a gente percebe é que as crianças e adolescentes começam a verificar mudanças em si mesmos, que serão emocionais, cognitivas. Eles vão ter dificuldade de reconhecimento das emoções que começam a vivenciar. E se forem vivenciando essa violência podem naturalizar", afirma o especialista.

Algumas crianças que vivenciam a mãe sendo vítima de agressão desenvolvem culpabilidade por serem expectadores. Isso traz ausência de limites e conflitos perigosos que favorecem agravos emocionais. "Fazem com que essas crianças tenham prejuízo a médio e longo prazo. Algo que deve ser trabalhado com certa urgência", relata.

Há crianças que vão sentir um trauma e seguem em busca de amparo na família ou amigos. Para quem convive com uma criança que vivencia essa violência, o importante é o acolhimento familiar. E no caso da mãe que sofreu isso, que ela também seja acompanhada. Uma opção de atendimento é o Centro de Referência de Assistência Social (Cras), da Prefeitura de Fortaleza. O Cras é coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e é possível obter acompanhamento gratuito. A Casa da Mulher Brasileira, inaugurada em Fortaleza há um ano, também oferece atendimento às vítimas. 

Feminicídio 

Em março de 2018, O POVO Online trouxe o especial Feminicídio: os sonhos e as histórias de mulheres assassinadas no Ceará. A cuidadora de idosos Rosilene Brito Cruz, a atendente Magna Jeane e o procurador federal aposentado Paulo Pessoa Carvalho falam sobre a difícil jornada para lidar com a ausência das familiares, vítimas do feminicídio. Eles são familiares, respectivamente, de Sthefani Brito, da enfermeira Cícera Carla e de Adriana Moura, mortas em diferentes circunstâncias pelos companheiros.

Serviço:

Casa da Mulher Brasileira 

Em Fortaleza existe a Casa da Mulher Brasileira, que atende mulheres que sofram qualquer tipo de violência de gênero, tais como: violência doméstica (física, psicológica, moral, sexual e patrimonial), assédio moral, assédio sexual, negligência, violência institucional, pornografia virtual, entre outras formas de violência.

No mesmo espaço existem serviços de acolhimento e triagem, apoio psicossocial, serviço de promoção de autonomia econômica, espaço de cuidado para crianças (brinquedoteca), alojamento de passagem e central de transportes. Os serviços oferecidos são gratuitos.

Rede de Serviços

Acolhimento

O serviço da equipe de acolhimento e triagem é a porta de entrada da Casa da Mulher Brasileira. Forma um laço de confiança, agiliza o encaminhamento e inicia os atendimentos prestados pelos outros serviços da Casa, ou pelos demais serviços da rede, quando necessário.

Rede de Apoio

A equipe multidisciplinar presta atendimento psicossocial continuado e dá suporte aos demais serviços da Casa. Auxilia a superar o impacto da violência sofrida; e a resgatar a autoestima, autonomia e cidadania.

Delegacia Especializada

Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) é a unidade da Polícia Civil para ações de prevenção, proteção e investigação dos crimes de violência doméstica, familiar e sexual, entre outros.

Juizado Especializado

Os juizados/varas especializados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher são órgãos da Justiça responsáveis por processar, julgar e executar as causas resultantes de violência doméstica e familiar, conforme previsto na Lei Maria da Penha.

Ministério Público

A Promotoria Especializada do Ministério Público promove a ação penal nos crimes de violência contra as mulheres. Atua também na fiscalização dos serviços da rede de atendimento.

Defensoria Pública

O Núcleo Especializado da Defensoria Pública orienta as mulheres sobre seus direitos, presta assistência jurídica e acompanha todas as etapas do processo judicial, de natureza cível ou criminal.

Promoção de Autonomia Econômica

Esse serviço é uma das “portas de saída” da situação de violência para as mulheres que buscam sua autonomia econômica, por meio de educação financeira, qualificação profissional e de inserção no mercado de trabalho. As mulheres sem condições de sustento próprio e/ou de seus filhos podem solicitar sua inclusão em programas de assistência e de inclusão social dos governos federal, estadual e municipal.

Central de Transportes

Possibilita o deslocamento de mulheres atendidas na Casa da Mulher Brasileira para os demais serviços da Rede de Atendimento: saúde, rede socioassistencial (CRAS e CREAS), medicina legal (Pefoce) e abrigamento, entre outros.

Brinquedoteca

Acolhe crianças de 0 a 12 anos de idade, que acompanhem as mulheres, enquanto estas aguardam o atendimento.

Alojamento

Espaço de abrigamento temporário de curta duração (até 24h) para mulheres em situação de violência, acompanhadas ou não de seus filhos, que corram risco iminente de morte.

Local: Rua Tabuleiro do Norte com Rua Teles de Sousa, Couto Fernandes, Fortaleza