Há 180 anos nascia Dragão do Mar, o cearense mais importante na história do Brasil
Há 180 anos nascia Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar. Prático da barra virou líder dos jangadeiros fortalezenses e ficou na história como ícone do movimento que impediu o tráfico interprovincial de escravizados
16:11 | Abr. 15, 2019
Você está na parte 1 da reportagem sobre os 180 anos do nascimento de Dragão do Mar.
>> Dragão do Mar e a resistência dos jangadeiros (parte 2)
>> 180 anos depois, que legado resiste? (parte 3).
Canoa Quebrada, 15 de abril de 1839. Nascia Francisco José do Nascimento. Sobreviveu aos primeiros dias por milagre, contam os registros da época. Desenganado, uma espinha de peixe atravessando a garganta do recém-nascido quase o matou.
O pai, Manuel do Nascimento, era pescador e morreu cedo ao buscar riqueza em um seringal do Amazonas. O avô também era jangadeiro e, um dia, do alto mar não retornou. A mãe, Matilde Maria da Conceição, precisou se desdobrar, mas o trabalho de rendeira não lhe rendia muito. Não demorou para que entregasse o filho de oito anos para uma família com melhores condições financeiras.
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O pequeno Chico da Matilde, como ficou conhecido, precisou ainda na infância laborar. Virou menino de recado no veleiro Tubarão, que transportava mercadorias para o Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte. A relação com o mar começou aí. E dele não se desprendeu mais. Aos 20, quando aprendeu a ler, recusou trabalho nas obras do porto de Fortaleza para voltar ao mar em um trajeto entre Ceará e Maranhão.
Muito da infância foi descoberto em um diário do próprio Dragão do Mar, estudado pelo jornalista e único biógrafo Edgar Morel. Em um dos trechos, Chico escreveu que a "mãe era alta, forte, muito morena". Explicou também que foi a partir dela que ficou chamado de Chico da Matilde - costume comum no Interior o de relacionar o nome do filho ao de um dos pais.
Chico parecia estar destinado à resistência. Algumas décadas depois se tornaria liderança do movimento que impediu o tráfico de escravizados do Ceará para as regiões Sul e Sudeste do País. A venda era conhecida como comércio de carne humana, na expressão mais fática. Da valentia de impedir a saída pelas águas que cercavam o porto veio a alcunha de Dragão do Mar, atribuído pelo romancista maranhense Aluísio de Azevedo.
Não à toa o aniversário do Dragão do Mar acabou sendo a data escolhida para celebrar também a fundação de Canoa Quebrada. Ironicamente, a rua que ganhou o nome do herói jangadeiro acabou ficando como conhecida como Broadway pela vida noturna tão característica e interferência do turismo.
"Do Ceará não sai mais carne humana"
A noção de escravidão foi mudando ao longo dos anos que seguiram o nascimento de Chico da Matilde. Um dos primeiros passos para a mudança de contexto veio em 1850, quando a Lei Eusébio de Queiroz mudou a legislação escravista no Brasil. A partir daquele ano estava proibido o tráfico negreiro da África para o País. Apesar do que pode ser considerada tendência para o fim da escravidão, o que se formou foi uma mudança de rotas no tráfico. Configurou-se comércio entre províncias em crise. Do Ceará, homens e mulheres eram levados para províncias cafeeiras do Sudeste.
Nesse contexto, começam a surgir jornais e associações libertadoras ao redor do Império. No Ceará, não foi diferente. O jornal Libertador, produzido pela Sociedade Cearense Libertadora teve papel fundamental na difusão das notícias sobre alforria. Muitas delas tratando com muita cerimônia e atribuindo benevolência aos então escravistas.
Chefe do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC) e ex-vice-governador do Estado do Ceará, Francisco José Pinheiro destaca que é nesse contexto que surge a figura de Chico da Matilde. "O Dragão do Mar era um líder para os jangadeiros, organizava o processo de transporte. Chega um momento em que ele reúne esses homens e diz: "Do Ceará não sai mais carne humana'", destaca o professor. "Era uma liderança importante. Um mulato descendente de escravizados que sentia na pele as problemáticas".
A liderança não era meramente política. Nascimento exercia cargo de prático, tornando-se prático-mor da barra do Porto de Fortaleza anos depois. É ele o profissional que lida diretamente com as tripulações das embarcações nas zonas de praticagem, nas regiões onde é feito embarque e desembarque. Na época, os navios não atracavam na terra. A Ponte dos Ingleses avançava no mar, mas não alcançava as embarcações. Por isso o transporte de pessoas e mercadorias era realizado por jangadas.
É de Chico da Matilde o papel de fortalecer o movimento abolicionista e abrir uma brecha significativa na aliança da classe dominante brasileira pró-escravidão. O professor Pinheiro explica que essa classe dominante "traçou um mecanismo de tentar adiar ao máximo a abolição" a partir da Lei do Ventre Livre, em 1871. O texto tornava livre todos os filhos de mulheres escravizadas daquele ano em diante.
Com a Lei, as crianças poderiam ficar com o "proprietário" até completar a maioridade ou serem adotadas. Na prática, essas crianças continuavam escravizadas. Em 1885, a Lei do Sexagenários liberta escravizados com mais de 60 anos de idade. Centenas de idosos vão para a rua, muitos com alguma deficiência física.
Impedir a saída de escravizados foi o suficiente para tornar Dragão do Mar um ícone do movimento. "É um protagonista, e era uma pessoa do povo. O Dragão, junto com outras lideranças, consegue convencer os jangadeiros a não embarcar naquele dia", continua o historiador. "Naquele momento histórico, foi ele quem soube fazer o movimento porque ele era um articulador. O homem certo no lugar certo. Por isso se tornou uma figura proeminente".
Para a historiadora Patrícia Xavier, autora do livro "Dragão do Mar: A Construção do Herói Jangadeiro" (2011), a desenvoltura de Chico da Matilde nas rodas intelectuais influenciou no estabelecimento da figura na historiografia. "O movimento abolicionista no Ceará era formado, principalmente, por uma elite intelectual, profissionais autônomos, empresários. Esse movimento organizou diversas ações em prol da abolição no Ceará", conta a historiadora. Dentre as ações, compra de alforrias, transbordo de escravos de Fortaleza para o Interior e uma espécie de serviço de proteção aos fugidos.
Xavier explica que, mesmo que Dragão tenha a liderança da greve atribuída a ele, o episódio do trancamento do porto foi planejado pelo movimento abolicionista. Ela destaca que o primeiro trancamento do porto não contou com a presença de Chico da Matilde, que somente mais tarde se juntou ao movimento.
O prático era proprietário de duas jangadas. Os relatos apontam que eram arrendadas pelos pescadores. O fato, no entanto, é pouco explorado. A pesquisadora não encontrou evidências de que o diário que teria sido escrito por Francisco do Nascimento e servido de referência para a biografia de Morel realmente existiu.
"Com a adesão ao movimento abolicionista, ele passa a frequentar os clubes, salões e diferentes espaços ocupados pela elite, se saindo muito bem em todas as circunstâncias", relata a autora. "Essa penetração no círculo intelectual, sem dúvidas, favoreceu a construção da memória de herói do prático-mor". Dragão, relatado como um homem "sempre bem vestido, com barba e cabelo impecáveis", chegou inclusive a abrigar escravos fugidos na sua casa.
Além do Dragão
Chico da Matilde não era portanto o único grande líder do movimento abolicionista. Um jangadeiro importante no processo foi José Napoleão que, embora já fosse uma liderança conhecida, recusou a responsabilidade de organizar a greve e indicou o próprio Dragão do Mar.
"Ele preferiu indicar o Chico da Matilde para organizar o movimento porque ele tinha instrução. Era um homem que se vestia razoavelmente bem, barba bem feita, sabia noções de francês e alemão. Era um sujeito muito peculiar", descreve o historiador Airton de Farias, que acaba de lançar o livro “Pavilhão Sete: presos políticos da ditadura civil-militar" (Expressão Gráfica, 2019).
Para o pró-reitor de Graduação da Unilab, Edson Holanda, já ter nascido liberto foi fator central nesse processo: "Ele desde cedo trabalhou nas embarcações, o que fez com que ele tivesse acesso básico a outras línguas, e era participante ativo das reuniões. Era um perfil mais aproximado dos abolicionistas".
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestre em História pela UFC, Airton explica que, para o movimento abolicionista, era interessante ter um negro na campanha já que a crítica dos escravocratas é que o movimento era formado pela elite. "A presença do Dragão desconstrói o argumento da campanha de classe média, de intelectuais e brancos. Era importante a presença do homem negro, mesmo que não ele não seja escravo ou de condição social menor", elabora Airton. "Estava entre os dois mundos: trabalhadores, negros e mestiços; e tinha um pé nas relações dos meios intelectuais e políticos que compactuou".
A comissão da Sociedade Abolicionista Cearense que foi ao Rio de Janeiro, capital do Império, era formada por José Avelino, Moura Brasil e Álvaro de Oliveira, todos recebendo medalhas e honrarias, como conta Luciana Cavalcante no livro "Dragão do Mar" (Edições Demócrito Rocha, 2002). Embora a comissão tenha sido recebida pela imperador, era Chico quem, nas ruas, recebia as homenagens.
O ano era 1884. A revista Ilustrada, o Jornal do Commercio e a Gazeta de Notícias registraram a chegada do herói. A história conta que as celebrações entravam pela madrugada, com direito a fanfarras pelas ruas do Rio. Teria sido atendendo ao clamor de populares que Dragão do Mar recebeu medalha de ouro pela Sociedade Abolicionista. Só depois, como conta Raimundo Girão, foi recebido pelo imperador, com quem teria conversado por cerca de 20 minutos sobre abolição.
Para além de entidades que reuniram nomes como João Cordeiro e Antônio Bezerra, o Ceará também teve um grupo de mulheres abolicionistas. Fundada no dia 25 de dezembro de 1882, a sociedade Cearenses Libertadoras (grupo dirigido por Maria Tomásia Figueira Lima) tinha como um dos principais elementos a esposa de Francisco José do Nascimento, personagem que pouco se sabe. "É uma mulher negra que participa desses eventos todos. Ela não só apoiou o marido, vai para as manifestações, é do movimento. Ainda mais em um época em que mulheres se envolviam pouco politicamente", pontua Airton de Farias.
A rota dos escravizados
Não é possível traçar uma rota para homens e mulheres escravizados porque Fortaleza não tinha lugares próprios para a acomodação. Comerciantes alojavam seus escravizados em sobrados, no térreo - serviam de moradia na parte superior e comércio na parte inferior do imóvel. Muitos escravos faziam percurso do Interior do Estado para Fortaleza. De acordo com Francisco José Pinheiro, havia em Fortaleza agentes compradores ou intermediários, que recebia o escravizado e pagava ao proprietário quando o negócio era garantido.
Não havia, no entanto, um espaço onde a negociação acontecia. "Era uma relação muito privada entre os comerciantes. Na Bahia, havia um local de chegada dos escravos, na Praia Vermelha. Eles chegavam do continente africano, ficavam alguns dias para se recuperar da viagem em um local que existe até hoje. Depois, ficavam expostos como peças para serem comprados pelos escravistas", conta o historiador. "Aqui, grandes comerciantes faziam aquisição desses escravos e depois vendiam. Havia também algumas rotas terrestres, mas não eram tão comuns. Índios que faziam serviço de correios a pé de Pernambuco e da Paraíba".
O papel na história
Dragão do Mar foi provavelmente o cearense com papel mais importante na história do Brasil. Castello Branco teve mais poder. Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, saiu de Quixeramobim para fazer história na Bahia. José de Alencar inventou uma literatura nacional, a partir do Rio de Janeiro. Porém, a relevância da greve dos jangadeiros, a importância simbólica na campanha abolicionista tornam o legado do Chico da Matilde mais duradouro e transformador para a vida do povo, ainda que incompleto.