Feminicídio: os sonhos e as histórias de mulheres assassinadas no Ceará
A cuidadora de idosos Rosilene Brito Cruz, a atendente Magna Jeane e o procurador federal aposentado Paulo Pessoa Carvalho possuem em comum a ausência das familiares, vítimas do feminicídio. Eles são familiares, respectivamente, de Sthefani Brito, da enfermeira Cícera Carla e de Adriana Moura, mortas em diferentes circunstâncias pelos companheiros[VIDEO1]No dia Internacional da Mulher, 8 de março, O POVO Online reuniu histórias de mulheres que tiveram os sonhos interrompidos, vítimas de violência praticada pelos próprios companheiros, o feminicídio.
[FOTO2]A acompanhante de idosos Dona Rosilene Brito Cruz, 45 anos, a atendente de farmácia Magna Jeane, de 32 anos, o procurador federal aposentado Paulo Pessoa Carvalho , 78 anos, possuem em comum a ausência das familiares, vítimas do feminicídio. Eles são familiares, respectivamente, de Sthefani Brito, da enfermeira Cícera Carla e de Adriana Moura, mortas em diferentes circunstâncias pelos companheiros.
"Eu percebia no olhar da minha filha que ela não era feliz", diz mãe de Stefhani Brito
[FOTO1] Maria Rosilene Brito Cruz carrega, há dois meses, a dor de perder a filha, Stefhani Brito Cruz, de 22 anos, e concedeu uma entrevista a O POVO Online, explicando como percebeu que a filha era vítima de um relacionamento abusivo. "Eu percebia no olhar da minha filha que ela não era feliz, mas ela dizia: - mãe, deixe", relata.
Dona Rose, como é chamada pelos conhecidos, era muito amiga da filha. Stefhani levava no corpo uma tatuagem que dizia: "Minha mãe, minha heroína, minha mãe, minha flor divina". Talvez pela cumplicidade, a mãe atendeu ao apelo para que não denunciasse o caso à Polícia. Rose diz que se sente culpada por não ter denunciado Alberto. Na tentativa de alertar outras mães que passem pela mesma situação, ela orienta que procurem observar, pois em determinadas situações, as mulheres sofrem caladas e não contam aos familiares.
"Se eu tivesse denunciado antes ela não estaria morta. Ele poderia estar pagando, mas eu não denunciei porque ela pediu. Por mais que sua filha peça, não deixe. Denuncie, porque essa pessoa pode vir a fazer a mesma coisa que esse indivíduo, que matou minha filha", relatou.
O sonho de ser aeromoça e viajar pelo mundo
Stefhani alimentava o sonho de ser aeromoça, mas ao iniciar o relacionamento com Alberto Calixto, cursava o 3º ano do ensino médio e largou a escola. “Ela queria ser aeromoça e o sonho dela era viajar pelo mundo todo", diz a mãe. O sonho de Stefhani foi interrompido pelo ciúme e possessividade do namorado. "Ela não podia ir nem daqui até uma esquina sozinha. Ela passava o dia dentro de casa, não saía para canto nenhum. Ela ia para minha casa e logo saía porque ele ficava ligando. Às vezes, para conversar com os amigos, ela pedia para usar o Instagram do meu filho mais velho", disse.
Stefhani, quando foi morta, estava separada de Alberto há seis meses e ele tinha outro relacionamento. A jovem morou um mês com a mãe, mas resolveu morar na avó na tentativa de manter distância do ex-companheiro. Ela trabalhava cuidando de um bebê de familiares de Alberto.
No dia do crime, a jovem teria passado o dia na praia com a criança e os pais do bebê. À noite, teria recebido ligações de Alberto que exigiam a sua presença. Ela avisou em casa que estava indo encontrá-lo. Mais tarde, ela entrou em contato novamente com familiares, para pedir fotografias do Ano Novo e Natal, e em seguida ligou com a voz abafada e de choro, novamente pedindo todas as fotos.
A família entrou em contato com familiares de Alberto e, em seguida, recebeu uma ligação da irmã dele, informando que Alberto avisou que havia agredido Stefhani e deixado ela nas proximidades do Sítio Córrego, mas que havia Polícia e uma ambulância no local.
Ao chegar às margens da lagoa, a família descobriu que a ambulância foi apenas para constatar a morte da jovem. ”Depois disso, não vi mais o sorriso de minha filha", lamenta Rose.
“Nunca vamos esquecer essa ligação. Ele ligou e disse – Eu fiz uma tragédia, acabei com a minha vida. Matei sua irmã”
[FOTO4]A enfermeira Cícera Carla de Almeida faria 32 anos no dia 20 de fevereiro, mas teve a vida interrompida, no dia 31 de janeiro de 2018, pelo companheiro com quem era casada há mais de 17 anos. Cícera nasceu e foi criada no município de Icó, onde cursou enfermagem. Desde os 15 anos mantinha um relacionamento com Alexandre Martins Caminha. Ele era borracheiro e trabalhava no estabelecimento da mãe de Cícera quando os dois se conheceram.
O casal teve um filho e, depois de concluir a faculdade, Carla, também chamada pelos amigos e familiares por "Pipi", passou em um concurso e foi trabalhar em Fortaleza. O marido dela e o filho permaneceram em Icó. No dia 31 de janeiro, a família de Cícera Carla acordou às 00h20min com uma ligação do celular da vítima. No entanto, quem falava era Alexandre. Primeiro, ele fez uma série de comentários e dizia que estava incomodado, pois Carla estava "muito bonita". Ela havia feito cirurgias para diminuir a barriga e colocado próteses de silicone nos seis. Ele disse que sentia ciúmes. Quem conta os detalhes é Magna Jeane Alves Nunes, cunhada de Cícera Carla.
Quando o irmão de Cícera perguntou o motivo da ligação feita tão tarde, Alexandre revelou o crime que havia cometido. "'Eu fiz uma tragédia, acabei com a minha vida, matei sua irmã', dizendo (ele) para o meu marido. Nesse momento, meu marido deu murros nas paredes e ficamos sem acreditar”, conta Magna.
A rotina de Carla era voltar durante as folgas ao município, onde fazia comida e deixava almoço congelado, lavava roupas e arrumava a casa. No entanto, era bastante cobrada por Alexandre. "Ele gritava com ela na nossa frente, na frente das pessoas, a mandava ir pra casa fazer as coisas. A gente não se metia. Não sem que ela pedisse", diz.
A enfermeira, que morava em um apartamento na Parangaba, sonhava em fazer curso de medicina em Cuba. Ela estava cursando inglês em Fortaleza e organizando toda a documentação.
Conforme Magna, o marido, pelo menos diante da família, nunca se colocou contra o sonho dela. "Ele deu entrevistas afirmando que tinha matado a esposa porque ela havia pedido a separação". No entanto, esse desejo não foi comunicado à família. Alexandre havia viajado para Fortaleza em dezembro e decidido ficar na Capital. Ele tinha conseguido um emprego e planejava morar com a esposa. No entanto, a família relata que, ao conhecer o trabalho dela, o Alexandre teria ficado enciumado.
Quando cometeu o crime, Alexandre espancou a esposa e depois a enforcou. Ele saiu do apartamento dela, encontrou uma viatura da Polícia Militar, acenou e informou aos PMs que havia acabado de matar a companheira. Os policiais foram até o local e encontraram a mulher morta. Em seguida, ele foi levado à delegacia e preso. O que a família pede é Justiça para que ele não fique preso um ou dois anos e depois seja solto.
“Ele não tem noção do que fez. Acabou com uma família todinha. Todo mundo aqui está inconformado. Por pura ignorância e ciúmes. É muito difícil pra gente saber que tudo acabou. Tudo o que ela sonhava", relatou a cunhada.
"Quando cheguei lá o pessoal da Polícia me chamou a parte e disse que estavam desconfiando do meu genro"
O procurador federal aposentado Paulo Pessoa de Carvalho, 78 anos, diz que após dois anos e meio da morte da filha Adriana Moura de Pessoa Carvalho Moraes, 38, e da neta de apenas oito meses de idade, ainda vive a dor e o sofrimento. Marcelo Barbarena Moraes, 37, é acusado pelos crimes e segue preso.
[FOTO6] "A gente está acompanhando. Ele tem feito muitos recursos e todos têm sido negados. A justificativa é justamente pelo grau de periculosidade dele na sociedade", explica o pai de Adriana. Para ele, a prisão de Marcelo é uma das coisas que trazem um pouco de "alento".
"A única coisa que a gente espera é que ele seja penalizado de acordo com o tamanho da crueldade dele. Além do feminicídio, ter a coragem de matar a própria filha, com oito meses de vida. Hoje vivemos as consequências, tenho problemas de saúde, estou em tratamento e o emocional termina afetando a saúde de modo geral", comenta.
Paulo lembra que Adriana era uma pessoa carinhosa e "família", o que a fez se mudar do Rio Grande do Sul com o marido para Fortaleza, onde convivia de perto com os pais. O pai de Adriana diz que o casal tinha problemas conjugais e que Marcelo demonstrava o desejo de ir morar no Rio Grande do Sul, contra a vontade de Adriana. No entanto, ela estava disposta a atendê-lo.
[FOTO7] "Nunca imaginei que ele fosse cometer esse crime. Ele tinha muita atenção comigo e sempre estava convidando a gente para comer churrasco. Para nós, foi uma surpresa grande. O irmão dele telefonou dizendo que havia acontecido um assalto, mas logo quando cheguei lá o pessoal da Polícia me chamou à parte e disse que estavam desconfiando do meu genro. Eu disse que não era possível, fiquei muito surpreso com isso. Nunca se imaginou que ele chegasse a tanto", revela o pai da vítima.
Paulo Pessoa diz que Marcelo matou Adriana e o bebê, mas que o casal ainda deixou uma filha de 10 anos. Ela é acompanhada por psicólogos e ficou sob a guarda da família materna.
Orientados por psicológos, os avós conversaram com a criança e explicaram tudo o que houve. E quando perguntada se tem interesse em ver o pai, ela diz que não. "O sonho dela (Adriana) era criar as duas filhas e fazer viagens. O sonho dela era voltado para as duas meninas. Foi cruel com a mulher, com a família, foi frio. A gente espera uma penalidade máxima, bem à altura do que ele fez", relata.
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Ao O POVO Online, em fevereiro, o advogado de defesa de Marcelo Barberena, Nestor Santiago, argumentou que as primeiras confissões do cliente “foram realizadas sem a presença do advogado ou foram realizadas em horários fora do expediente da Polícia". A versão dele alega inocência de Marcelo Barberena.
Matou a esposa, escondeu o corpo no refrigerador após mensagens de celular
[FOTO9]Em novembro de 2015, uma mensagem de celular foi o "estopim" para que o comerciante Francisco Roberto de Oliveira, 46, matasse a técnica de enfermagem Elizangela Gomes Lemos, 35, com quem era casado há pelo menos 10 anos, e escondesse o corpo dela em um refrigerador. A mesma mensagem teria sido o principal motivo para que ele viajasse mais de 150 quilômetros até o município de Choró, onde fez de refém e matou o vice-prefeito Sidney Cavalcante Sousa, 42.
A delegada Anna Nery Cavalcante, que na época era titular da Delegacia de Quixadá, atuou nas negociações e relata que é um caso impossível de esquecer. "O que a gente queria era preservar pensando na vida dele, nas crianças, e ele confessou a morte da esposa. Estava cheio de Polícia, Cotar, Choque, helicópteros sobrevoando a prefeitura de Choró", relatou.
[FOTO10]A delegada conta que na mochila de Francisco Roberto havia fotos das crianças, e que ele chorou muito ao confessar que havia matado a mulher. "Pra mim me chocou e me frustrou por não ter sido um desfecho diferente. As crianças hoje são orfãs de pai e mãe. Vão ter esse trauma na vida", relata.
Conforme Anna Nery, enquanto estava trancado na sala do vice-prefeito e negociava com a Polícia, o homem comentava sobre como era bonita a sua família e que tudo estava desmoronando. "Fiquei sem dormir uns três dias pensando nele", relembra.
Números
Entre os anos de 2015 e 2017, o Ministério Público, por meio do Centro Operacional e Matéria Criminal (Caocrim), contabilizou 505 casos de feminicídio no Estado do Ceará. Desses casos, 153 homens foram denunciados e estão respondendo a processo penal. Apenas 23 condenações foram registradas pelo sistema. Também foram contabilizadas duas absolvições e em cinco casos o processo foi extinto porque o réu morreu.
Em sete casos houve a desclassificação, quando a Justiça entendeu que não houve feminicídio. Outros 336 inquéritos estão em andamento, sob investigação. Treze inquéritos foram encerrados. Destes, 12 foram arquivados porque o acusado morreu e um por outras razões. O promotor de Justiça André Clark explica que um inquérito pode ser arquivado quando o caso se encerra sem descobrir a autoria, por exemplo.
A Organização das Nações Unidas (ONU) calcula que 38% de todas as mulheres assassinadas no mundo são mortas pelo parceiro ou ex-parceiro. Entre os anos de 2016 e 2017, foram abertos 173 inquéritos de feminicídio, conforme O POVO divulgou em maio de 2017. Destes, 112 ainda estavam sob investigação.
A delegada adjunta da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), Rebeca Cruz, reforça que o perfil os autores do feminicídio são companheiros e ex-companheiros, namorados e ex-namorados que não aceitam o fim do relacionamento. "Ele tem o sentimento de posse, machista. Já que ela não é minha não vai ser de mais ninguém", explica. Para Rebeca, quando a DDM passa a investigar os casos de feminicídio, percebe que não há registro de denúncia. Entretanto, ao aprofundar a investigação, descobre que já existia a violência, mas a mulher não a denuncia. Em alguns casos, ela frisa que o homem tenta ou comete suicídio após o crime.
Especialista diz que sentimento de posse motiva homens ao feminicídio
[FOTO8] Lola Aronovich é professora de Literatura em Língua Inglesa na Universidade Federal do Ceará (UFC) e autora do blog Escreva Lola Escreva. A especialista explica que o feminicídio acontece quando uma mulher é morta por ser mulher, ou seja, sua condição de gênero é uma das motivações, e também um dos agravantes, do crime. Ela destaca que se uma mulher for morta em um assalto, por exemplo, não é feminicídio. Mas se a mulher é morta pelo parceiro ou ex-parceiro o crime é caracterizado como feminicídio.
Lola ressalta que esse tipo de assassinato era chamado de crime passional, mas hoje o termo mais apropriado é feminicídio. Lola explica que os homens são mais inclinados a matar as companheiras com quem se relacionam, pois vivemos em uma sociedade machista e patriarcal, em que muitos homens se acham donos das mulheres com quem se relacionam. Quando a relação acaba, ou quando a mulher expressa a vontade de terminar, o homem machista prefere ver a mulher morta do que com outro. O sentimento de posse é a principal motivação.
Quando acontece o feminicídio, os filhos dos casais sofrem com a situação. Lola explica que, em uma palestra da ativista Maria da Penha, uma das questões em pauta era que a criança fica orfã de mãe e, muitas vezes, é entregue ao pai ou à família dele. "Acredito que o trauma dessa criança pode ser ainda maior. Além do mais, na maior parte das vezes o feminicídio é antecedido pela violência doméstica”, explica.
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