Ceará faz cirurgia revolucionária de reconstrução vaginal com pele de tilápia

Uso da pele da tilápia para reconstrução vaginal é um procedimento inédito no mundo. Síndrome de Rokitansky acomete, em média, uma em cada 5 mil mulheres

13:50 | Fev. 04, 2018

Pele do peixe usada no procedimento com molde ao lado (foto: )
[FOTO1]

Quatro mulheres no Ceará passaram pelo procedimento de reconstrução vaginal com pele de tilápia. Inédita no mundo, a cirurgia muda diretamente a vida de mulheres portadoras da Síndrome de Rokitansky, doença que provoca alterações no útero e até ausência de parte da vagina. A estratégia revolucionária foi descoberta pelo médico e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), Leonardo Bezerra, seguindo pesquisa liderada pelo professor doutor Manoel Odorico Moraes, do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos (NPDM).
 
Condição rara, a agenesia vaginal incide em uma a cada 5 mil mulheres. O procedimento, ainda em fase clínico-experimental, é realizado com pacientes do Ambulatório de Adolescente da Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac), coordenado pela médica e professora titular de Ginecologia e Obstetrícia da UFC Zenilda Bruno. Equipe multidisciplinar da Meac e do NPDM trabalha no procedimento.
 
As pesquisas começaram em janeiro 2016, após o professor Leonardo Bezerra ter acesso aos estudos originais do NPDM. "Eles tiveram sucesso com mais de 200 pacientes para o tratamento de grandes queimadas", destaca. Os estudos apontaram que a pele de tilápia é rica em colágeno tipo 1, fundamental para a predominância da pele humana. 

A membrana já é usada no Ceará desde 2015 no tratamento de queimados, implantado pelo cirurgião plástico Edmar Maciel, coordenador da pesquisa e presidente do Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ) do Instituto Dr. José Frota (IJF), que já aplica a pele de tilápia como um regenerador natural da pele humana.

A cirurgia de neovagina consiste na construção do órgão genital. O procedimento tradicional, feito há mais de 20 anos, é usando a própria pele da virilha da paciente. "Era um processo demorado, doloroso e estigmatizante", explica o médico que tem doutorado em Uroginecologia e Cirurgia Vaginal. A cirurgia deixava cicatrizes e risco de pelos incômodos no tecido reconstruído.
 
[FOTO2] 
 
Procedimento menos agressivo 

O procedimento com a derme de tilápia não exige que mais pele da paciente seja retirada, além de ser menos agressivo. "A cirurgia é realizada abrindo um espaço entre a bexiga e o reto e forrando-o com a pele de tilápia", especifica. "Após o procedimento, é colocando um molde com um formato de vagina, deixando o espaço aberto e impedindo que as paredes da "nova vagina" se juntem novamente". 

"É utilizado um seguimento pequeno que corresponde à metade de um peixe. Essa pele não tem escama, é um processo de esterelização todo feito no NPDM", diz o médico. O estudo clínico foi autorizado pelo Conselho de Ética da Universidade e do hospital. Desde então, a equipe tem trabalhado em sigilo.

Leonardo Bezerra explica que, do ponto de vista biológico, a vagina é uma extensão da pele. Nas duas primeiras pacientes, a pele da tilápia foi usada como curativo, como em casos de queimadura. O resultado esperado veio quando a pele foi deixada no corpo da paciente. "A pele é completamente incorporada pelo organismo e estimula a produção de fatores de crescimento celular e de vasos sanguínes, gerando um novo tecido de característica humana", explica Bezerra. 

[FOTO3]Na primeira biópsia, a equipe médica verificou que houve também estímulo de células tronco. Exames mais recentes apontam que não há mais característica da pele da tilápia. "Não foram encontrados sinais de rejeição de corpo estranho. As células se adaptaram tão bem que não houve nenhuma reação inflamatória grosseira". 

Depois da primeira biópsia, o exame é repetido com três e seis meses, mas o acompanhamento da paciente, segundo o médico, continua por tempo indeterminado. Com o procedimento, as pacientes poderão ter atividade sexual e retornarão mensalmente a cada dois anos para o acompanhamento médico.
 
Estudo multicentrico
 
O próximo passo é transformar o método em multicentrico, quando o estudo clínico é realizado em localidades diferentes mas seguindo um protocolo específico. "Uma vez que conseguimos essa evolução satisfatória, queremos tentar usar a tilápia em outros procedimentos, como prótese biológica", diz Leonardo Bezerra.

Os testes serão conduzidos inicialmente em ratos e ovelhas. "Vamos fazer testes em modelo de hérnia, com a possibilidade de substituir tecidos do abdomen, e no modelo experimental de lesão de articulação no ombro", adianta. "A prótese biológica é o que mais se aproxima de medicina regenerativa". Estudos com animais devem ser feitos até 2019.
  
Antes disso, a quinta paciente no Ceará passará, em breve, pela cirurgia de reconstrução vaginal. "Por enquanto, só no Ceará. Mas queremos descentralizar o estudo. Nosso sonho é ajudar as mulheres no Brasil inteiro".