Ousadia de bandidos e omissão pública: a ascensão das facções que disputam o comando do crime

A maior chacina que o Ceará já conheceu é o resultado de anos de organização de grupos que levaram espécie de "gestão empresarial" ao tráfico e que usam a violência como forma de comunicação. E cuja atuação foi recorrentemente subestimada pelas autoridades

20:35 | Jan. 27, 2018

NULL (foto: )

Há menos de dois anos, a presença de facções criminosas era minimizada pelas autoridades da Segurança Pública. “Qualquer pirangueiro que joga uma pedra no vidro da janela de uma delegacia, por exemplo, já é considerado o novo Al Capone. Aí, chega no presídio como se fosse um bandido de extrema periculosidade”, disse à rádio O POVO/CBN o então secretário Delci Teixeira, em 27 de abril de 2016.

Em 28 de janeiro de 2016, O POVO noticiou as comemorações em comunidades pelas tréguas firmadas entre grupos criminosos. “Alianças de facções fortalecem o crime organizado”, dizia a matéria que era manchete do jornal daquele dia.

“Nas áreas dominadas pelo tráfico de drogas, territórios sempre em confronto com as polícias ou geradores de relações suspeitas entre criminosos e policiais corruptos, uma ‘ordem geral’ teria levado quadrilhas inimigas a se juntarem ou estabelecerem uma trégua em nome da ‘paz’ e pelos negócios dos traficantes”, mostrou O POVO em 31 de janeiro daquele ano. “Nada de execuções entre eles (a não ser que se quebre o acordo), nada de assaltos a cidadãos dali e liberdade para que a população circule sem ‘medo’ na comunidade”.

Ao final de 2016, o impacto foi visível: no Ceará, houve queda de 15,2% dos homicídios. Em Fortaleza, a redução foi de 39%.

Ainda em fevereiro de 2016, o governador Camilo Santana (PT) reagiu indignado quando questionado sobre a relação que a trégua entre facções teria com a redução dos homicídios. “Quer dizer que não significa nada os mais de mil e quinhentos homens que colocamos na corporação? Fazer a Lei de Promoções, que foi a maior da história desse País?”, indagou. Para ele, informações de tréguas eram “boatos” e “especulações irresponsáveis”. “Isso é uma forma de desmoralizar a Segurança Pública”.

Ousadia

Em “paz” entre si, os grupos criminosos apostaram em gestos de cada vez maior ousadia, tendo o poder público como alvo. Carro repleto de explosivos foi colocado ao lado da Assembleia Legislativa, em abril de 2016. Naquele mesmo mês, o próprio governador revelou ter recebido ameaças anônimas. Um mês antes, prédio da Secretaria da Justiça foi alvo de disparos.

Em julho, nova onda de ataques. Ônibus foram incendiados, policiais foram baleados. A sede da Guarda Municipal de Fortaleza foi alvo de disparos.

Fim da trégua

Os acordos duraram um ano. Já no primeiro dia de 2017, 56 presos foram assassinados em complexo penitenciário de Manaus. Na mesma semana, novo massacre terminou com 33 detentos mortos em Roraima.  A reação em cadeia se espalhou pelo País e caiu como bomba no Ceará. Os homicídios voltaram a subir e viabilizou-se o crescimento até de uma facção tipicamente cearense.

O impacto das facções se fez sentir no cotidiano das comunidades. Criminosos chegaram a estabelecer regras e posturas para entrar e sair dos locais. Proibiram até as pessoas de se reunirem e ficarem em uma praça. Atingiu-se o ponto de casas serem confiscadas e moradores serem expulsos dos locais onde viviam.

Os crimes aumentaram e se tornaram mais violentos. Entre janeiro e outubro do ano passado, foram encontrados em Fortaleza e Região Metropolitana pelo menos 13 corpos carbonizados, dez decapitados e outros 14 com sinais de tortura.A violência é demonstração de força e modo de dar recado aos adversários.

Além do domínio territorial, grupos criminosos passaram a se articular para espécie de “gestão empresarial” do tráfico, sobretudo na aquisição e comércio das drogas. Passaram a atuar como consórcios bastante estruturados.

Ao final do ano, foram contabilizados 5.134 homicídios no Ceará em 2017. Maior número de todos os tempos. Até então, o recorde era em 2014: 4.439 homicídios. O número de pessoas assassinadas no ano passado é maior que a população de 130 dos 184 municípios cearenses.

Pelos números do primeiro semestre do ano passado, ao menos 47% das vítimas de homicídios teriam envolvimento com facções, segundo a Polícia.

Em Fortaleza, a Prefeitura decidiu dar aos homicídios tratamento de epidemia.

O massacre da madrugada deste sábado é o ponto culminante da longa trajetória construída ao longo de anos, com sequências de atos de audácia, muitas vezes subestimados pelo poder público.