Caso de mulher em cárcere por 16 anos reflete machismo da sociedade, avaliam pesquisadoras
Maria Lúcia foi achada despida, em condições insalubres, após denúncia no último dia 8 de março. Ela está sendo acompanhada por equipe do Creas, que busca atendimento psiquiátrico em Itapipoca e auxílioO caso da mulher que viveu por 16 anos em cárcere privado no interior do Ceará, em Uruburetama, chama atenção pela perversidade. Maria Lúcia de Almeida Braga, 36, foi mantida presa pela própria família após ter engravidado de um filho que nem sequer pode conhecer. Uma violência que reflete o machismo da sociedade e também o cerceamento da liberdade da mulher sobre seu próprio corpo, como analisam pesquisadoras ouvidas pelo O POVO Online.
"O imaginário social sempre leva para o lado de que a pessoa é cruel, mas esse é um caso concreto e assustador de que a violência contra a mulher ainda é profundamente alicerçada no machismo", afirma a vice-líder do Observatório da Violência Contra a Mulher (Observem), Socorro Osterne.
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AssineA pesquisadora, que também é professora do Departamento de Serviço Social e Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (Uece), aponta a relação do cárcere de Maria Lúcia com o entendimento de que "a mulher deve obediência".
"O fato de ela ter engravidado parece ter sido para família uma desonra, e eles se acharam no direito de castigá-la. Como muitas vezes vemos homens matando, hostilizando, prendendo e dilacerando os órgãos sexuais das mulheres. Até para a gente que estuda [o assunto], é assustador", afirma.
Maria Lúcia foi achada despida, em condições insalubres, após denúncia no último dia 8 de março. Ela vivia trancada em um quarto sem luz e sem banheiro, com apenas uma rede. Por dia, só recebia duas alimentações, conforme a investigação da Polícia Civil. "É revoltante ainda hoje você ver uma mulher ser castigada porque teve um filho fora do casamento, esse contrato aceito como normal. Tem a ver com a cultura machista em que a mulher não pode desfrutar do próprio corpo", avalia Socorro.
Mariana Lacerda, integrante da Marcha Mundial das Mulheres, reforça ainda o problema da culpabilização das mulheres que engravidam. "Ela não teve mais autonomia sobre o próprio corpo por não cumprir uma norma da sociedade. É muito triste saber desse tipo de caso de desumanização mesmo com todo o avanço no debate dos direitos das mulheres. Ser mãe solteira é uma realidade no Brasil, e a culpa recair sobre as mulheres é uma expressão do machismo", diz.
Inquérito policial
João Almeida Braga, 48, irmão da vítima, está preso em uma cadeia cearense pelos crimes de maus-tratos e cárcere privado. O mandado dele é de prisão temporária e poderá ser convertido em preventiva, segundo o delegado Harley Filho, titular da Delegacia Regional de Itapipoca.
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"O mandado de prisão temporária tem validade de 30 dias, então minha ideia é pedir a preventiva. Também vamos verificar se ele tem alguma deficiência mental, o que poderia ensejar a representação para alguma instituição", explicou Harley ao O POVO Online, na manhã desta quinta-feira, 30.
Os pais da vítima, com idade avançada e problemas de saúde, foram acolhidos por terceiros, assim como a vítima (após ter ficado hospitalizada). "Uma pessoa de bem se compadeceu com os dois, que têm mais de 70 anos. O pai poderá ser indiciado, mas devido à idade, não vou representar pela prisão. Caberá ao juiz, depois que o inquérito for encaminhado ao MP [Ministério Público], decidir se ele vai responder em liberdade, ter uma prisão domiciliar", esclareceu o delegado.
Uma equipe do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), juntamente com o Conselho Tutelar, tenta encaminhar Maria Lúcia a uma unidade de atendimento psiquiátrico em Itapipoca, pois a cidade não possui esse tipo de serviço.
A expectativa é que a primeira consulta seja realizada na próxima semana, com transporte disponibilizado pelo Município. O Creas também busca regularizar a documentação da vítima para ela conseguir Benefício de Prestação Continuada - auxílio da Previdência Social destinado a idosos e pessoas com deficiência.
Cárcere
O cárcere privado é uma das violências contra a mulher que constam na Lei Maria da Penha (11.340/2006). Entre 2013 e 2016, a Secretaria de Direitos Humanos recebeu oito denúncias desse tipo de violência no Ceará, por meio de disque denúncia. Um número subestimado porque as vítimas muitas vezes não têm condições de denunciar e pode haver conivência de pessoas próximas.
Outras formas de cárcere privado, de acordo com a Secretaria de Direitos Humanos, são: impedir a mulher de sair com amigos ou familiares; não permitir a comunicação da mulher com outras pessoas; levar e buscar a mulher no trabalho com intenção de cortar o contato dela com outras pessoas.
"As leis são recursos valiosos, mas elas não conseguem dar conta desses preconceitos que às vezes a própria família se encarrega de repassar. Temos que investir na escolarização e na compreensão da igualdade de gênero", frisa Socorro Osterne.
A professora explica que as diferenças entre homens e mulheres existem, mas nenhuma delas autoriza qualquer submissão ou hierarquia entre gênero. "No caso dessa mulher, temos ainda o problema da demora das outras pessoas em denunciar, mas esses fatores não são instransponíveis. O machismo é uma construção social quase naturalizada, mas não é natural e deve ser desconstruído no nosso cotidiano, nas escolas, na sociedade, na mídia", completa a pesquisadora.
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