Participamos do

Ator cearense fala sobre polêmica envolvendo apresentação de peça na UFC

Documentário cênico repercutiu nas redes sociais após publicação de fotos em página na Internet. Pesquisadores criticam os ataques à comunidade LGBT e defendem o pluralismo de ideias no ambiente acadêmico
16:30 | Mai. 24, 2016
Autor Amanda Araújo
Foto do autor
Amanda Araújo Autor
Ver perfil do autor
Tipo Notícia

Nascer homem em um corpo de mulher e viver as aflições de escancarar isso à sociedade. O desafio de tratar um tema delicado como a transexualidade masculina foi tomado pelo ator cearense Ari Areia há alguns anos. A nudez, o sangue e os signos religiosos para exemplificar o sofrimento, porém, viraram alvo de discurso de ódio. A apresentação do monólogo "Histórias Compartilhadas", durante o seminário sobre sexualidade e gênero na Universidade Federal do Ceará (UFC), causou polêmica após fotos terem sido publicadas em uma página no Facebook.

"As pessoas estão acostumadas com a escola como um lugar de adestramento e crucificação dos corpos. Quando a gente vê uma subversão disso, elas entram em uma espécie de colapso", diz Ari. O espetáculo foi construído para o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da graduação dele em Jornalismo, mas depois ficou em cartaz no Dragão do Mar, Sesc Emiliano Queiroz e Iracema. Na última terça-feira, 17, integrou a programação do “I Seminário: Conversas empoderadas e despudoradas sobre gênero sexualidade e subjetividades”, no bloco de Psicologia da UFC.

Quase uma semana depois, a página "Fortaleza Sem Prefeito" publicou, sem autorização, algumas imagens da apresentação e deu margem para ataques à arte, ao público LGBT e até ao Ministério da Cultura. "A peça não recebeu nenhum investimento do MinC nem da universidade, foi toda feita de uma forma independente. As pessoas têm se sentido tranquilas para emitir um discurso de ódio se valendo de argumentos religiosos. É como se tivesse eclodido o ovo da serpente, estamos diante de algo tão tenebroso que não tenho nem como mensurar", explicou o ator.

O monólogo, com direção de Eduardo Bruno, traz depoimentos reais e representa a angústia dos transexuais, que são muitas vezes vítimas de preconceito e violência. "Quando a gente usa uma imagem do Cristo não se trata de um ataque à religião, a figura do Cristo é um paralelo à realidade desses homens porque o entendemos como um mártir, assassinado injustamente”, explica Ari. Em um momento da peça, o ator despeja o próprio sangue na imagem de Cristo, uma forma de aproximar o público do “peso da existência” dos ''meninos nascidos em corpos de meninas''. “É uma imagem chocante, mas é nessa proposta do soco no estômago que a gente discute a moral de algumas pessoas”, frisa ele.

[SAIBAMAIS 2] A técnica não envolve riscos à saúde e, para encenar o monólogo, Ari teve acompanhamento de um profissional de enfermagem. Ele conta ainda que vários amigos religiosos ficaram comovidos com a apresentação. "A cena é muito forte, acessa até o mais insensível dos espectadores, mas foi colocada descontextualizada, com discursos de desonestidade intelectual. A gente vê pessoas acompanhando essa manifestação de intolerância, incompreensão e de falta de sensibilidade’’, lamenta.

Para o estudante de Direito Eduardo Feijó, que estuda os direitos dos LGBTs e assistiu ao monólogo, a publicação das fotos sem a devida composição deu espaço aos pré-julgamentos. "Achei de mau gosto, colocaram a cruz em evidência para gerar uma confusão. O cristianismo em si é uma religião que prega o amor, a fraternidade, o acolhimento, mas muita gente utiliza isso para agregar ódio, desigualdade e violência", afirma.

“A universidade não pode ser um lugar de empacotamento de ideias, tem que ser o contrário disso, tem que ser o lugar de fruição”, completa Ari. A peça, que também já foi exibida em um evento da Uece e na Semana de Comunicação da UFC, entra em cartaz novamente no Teatro Universitário Paschoal Carlos Magno (Av. da Universidade, 2210 – Benfica) no próximo mês de junho.
[FOTO2]
Desconstrução
Apesar da polêmica na web, a peça foi aplaudida de pé durante a realização do seminário, conforme o doutorando em Sociologia, Júnior Ratts. Idealizador do evento, ele criticou os ataques nas redes sociais. "A universidade é um ambiente de construção de saberes, de democracia tanto para quem acredita em Deus como para quem não [acredita]. Eu sou cristão e aquilo não me agrediu de nenhuma forma. Não foi o uso da cruz pelo uso da cruz, não foi uma crítica a Jesus, mas uma crítica à sociedade que se mascara como cristã e utiliza a palavra de Deus para ferir", argumenta.

O seminário tinha o objetivo de dialogar sobre as questões de gênero da comunidade LGBT, por meio das discussões sobre cidadania, literatura e identidade trans. "A cruz representava o sangue que os transexuais têm derramado por conta da repressão. Sujeitos considerados marginais de uma forma geral, que sofrem agressões físicas e verbais em uma sociedade hipócrita", continua o doutorando.

A diretora do ''For Rainbow - Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual'', Verônica Guedes, acredita que a universidade deve tomar providências para garantir a liberdade de expressão dentro do ambiente acadêmico. "É um absurdo que a UFC se torne um ninho fascista. A peça foi super bem recebida no nosso festival, não tivemos nenhuma reclamação", diz.

Segundo Verônica, o tema da transexualidade precisa vir à tona muito mais vezes. "Essa população existe, não pode ser escondida debaixo do tapete do fundamentalismo. São pessoas que comem, pagam impostos e merecem respeito", completa.

Ratts ainda repreende a forma como as fotos do monólogo foram utilizadas para atingir o Governo Federal. "Quem estava lá se emocionou, quem não estava pegou [na Internet] um discurso de ódio, que é burro, mas bem articulado", avalia.

O POVO Online entrou em contato com a UFC, que respondeu apenas que não iria se pronunciar sobre o assunto.

Dúvidas, Críticas e Sugestões? Fale com a gente