Igualdade racial: como a garantia de direitos potencializa trajetórias
Políticas afirmativas se destacam na luta pela representatividade negra em todos os espaços
06:00 | Ago. 22, 2023
A política é, sobretudo, um meio de garantir direitos para os cidadãos. Especialmente para grupos minorizados – que, mesmo quando maioria, sofrem preconceito e são subrepresentados em diversas esferas sociais –, a legislação é essencial para a superação de desafios individuais e redução das desigualdades coletivas. Desigualdades essas que, muitas vezes, têm como base uma estrutura histórica que torna o caminho mais árduo para alguns.
No Brasil, assim como em outros países com herança escravocrata, essa é a realidade das pessoas negras, que apesar de representarem mais da metade da população ainda encontram grandes dificuldades para ascender a posições de poder e bem-estar social em virtude do racismo. Por conta disso, a advogada Isabel Mota, membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB-CE e do grupo Black Sisters in Law, considera que uma das principais conquistas legais da população negra é a política afirmativa com recorte racial, que garante o acesso a universidades e concursos públicos, entre outros espaços.
“Pensar em políticas afirmativas é pensar em reduzir a desigualdade, os déficits de acesso à saúde, educação, emprego. Como isso não cessava naturalmente, precisamos criar formas artificiais de diminuir o processo de desigualdade da sociedade brasileira”, destaca Isabel.
A Lei nº 12.711 (Lei de Cotas) – que completou uma década em 2022 e visa garantir uma reserva de vagas em instituições federais não só para pessoas negras, mas também para pessoas de baixa renda, alunos de escolas públicas, indígenas e pessoas com deficiência – é o exemplo mais bem sucedido nesse sentido. Segundo Isabel, a mudança provocada por ela inspirou o surgimento de políticas afirmativas em outros âmbitos, como universidades estaduais, concursos públicos e até empresas privadas.
No Ceará, se destacam, nesse sentido, a Lei nº 17.432 e a Lei nº 11.111, vigente em Fortaleza. Ambas reservam 20% das vagas nos concursos públicos da esfera estadual e municipal, respectivamente, para candidatos negros. Isabel Mota aponta a legislação de cotas como ponto fundamental para a promoção da igualdade racial.
“Não dá para esperar que primeiro se democratize o ensino para depois as pessoas chegarem a um patamar maior social, a cargos de maior envergadura, porque aí já se foi mais uma geração. Essa é uma forma de trabalhar nas duas pontas”, explica.
A jornalista Luizete Vicente, doutora em Comunicação e pesquisadora de raça, gênero e políticas públicas, destaca ainda a importância da Lei nº 10.639, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas do País. Criada em 2003, ela foi alterada em 2008, com a inclusão de estudos sobre história e cultura indígena. Segundo Luizete, ainda que precise ser melhor implementada, a lei tem tido grande impacto na formação e compreensão da identidade negra no Brasil.
“No Censo 2010, houve um salto na autoafirmação da população negra, uma onda de pessoas se afirmando pretas e pardas. Essa autoafirmação traz cidadania. As leis não servem apenas para criminalizar; é preciso construir sua identidade, e essa lei permite que as crianças possam acessar, ainda na escola, uma história que não é contada, ou que é contada através de outro olhar”, ressalta.
Para além das vagas na universidade, completa a pesquisadora, é preciso que haja, no ambiente acadêmico, outras produções de saberes. No Ceará, ela destaca a chegada da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) como um ponto de virada na educação do Estado. “Quando se fala da população negra e indígena, falam muito que aqui ‘não tem disso não’. A partir da Unilab, a gente vê que existe uma população negra e indígena forte no Ceará, com cultura e história, em cursos de graduação e pós-graduação que falam sobre isso”, completa.
A luta antirracista como estratégia governamental
Estudiosos e ativistas apontam o fortalecimento de políticas transversais para a população negra no Brasil a partir de medidas institucionais, como a recriação do Ministério da Igualdade Racial, extinto em 2016 e recriado no início deste ano. No Ceará, a criação da Secretaria da Igualdade Racial (Seir), também no início deste ano, é colocada pelos especialistas ouvidos por O POVO como uma das maiores conquistas do Estado neste sentido.
Antes funcionando como coordenadoria, a secretaria hoje é comandada por Zelma Madeira, doutora em Sociologia e professora do curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (Uece), e tem como objetivo inicial qualificar os dados sobre a população negra do Estado. “A gente parte do pressuposto de que qualquer política tem que ter registro de dados, tem que ter informação. Isso é iniciar a conversa”, declara Zelma.
Muitas atividades da Seir, explica a secretária, estão relacionadas a eventos de formação com representantes de outras secretarias, já que é necessário que todas as pastas estejam em consonância em relação a medidas de promoção de igualdade racial e combate ao racismo.
Além disso, segundo Zelma, o Governo do Estado tem fomentado iniciativas de apoio a empreendedores negros, como a Feira Negra, e se aproximado dos movimentos sociais negros e quilombolas através da escuta qualificada. “Realizamos ações no campo repressivo, que evidenciam que racismo é crime; valorativo, no campo educacional, e afirmativo, para que a gente possa seguir na luta de formular, monitorar e avaliar políticas de equidade social no nosso Estado”, conclui.
Além do acesso, é preciso garantir permanência
As leis têm mudado o perfil dos jovens que acessam espaços de formação e trabalho. “A juventude negra tem se organizado a partir de um outro olhar. Hoje, na universidade, há um olhar a partir dela, o que não era tão comum. A partir das mulheres, dos LGBTQIAP+. Há também outra lógica nas redes sociais, na militância”, destaca Luizete Vicente.
É a partir dessa nova ótica que o artista Rubéns Lopes, 36, trabalha e pesquisa. O professor de dança, que viu sua trajetória ser impulsionada pelas políticas afirmativas, acessou a política de cotas pela primeira vez em 2004, quando começou a cursar Publicidade em uma instituição privada com bolsa de 100% pelo Programa Universidade para Todos (Prouni).
Quando decidiu cursar uma segunda graduação, desta vez na licenciatura em Dança da Universidade Federal do Ceará (UFC), conseguiu garantir sua vaga através das cotas raciais. Ali, além de seguir seu sonho, alcançou também um nível de pertencimento que ainda não tinha experimentado em outras experiências formativas.
“Na UFC, consegui ver mais pessoas negras, mais pessoas indígenas – se não na qualidade de professores, que na época não tinha, mas na qualidade de alunos. Minha turma tinha uma diversidade étnica grande. O fato de as políticas de cotas raciais e sociais estarem garantidas de forma federal fez com que muitas pessoas que provavelmente não teriam acesso àquele curso estivessem e permanecessem lá”, comenta.
Rubéns destaca a importância das políticas de permanência, como bolsas de pesquisa, residência estudantil e isenção no restaurante universitário, dentre outras. Afinal, lembra, “a gente sabe que não é só entrar”. Ele destaca que, para muitas pessoas, não é possível estudar e trabalhar ao mesmo tempo, devido ao cronograma dos cursos, o que torna a evasão muito maior para populações vulneráveis.
Atualmente, além de cursar o mestrado em Artes no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), Rubéns é professor do curso técnico em Dança da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE) e atua em bancas de heteroidentificação na Capital. O procedimento é uma das formas de garantir que as políticas afirmativas com recorte racial beneficiem, de fato, as pessoas a quem elas se destinam.
Mas, ainda que as leis garantam o acesso e a permanência nos espaços, há muito mais a ser feito para que pessoas negras tenham seus direitos garantidos em plenitude. “Não basta apenas que nós acessemos os cursos da universidade ou qualquer outro concurso público. É preciso também que outras pessoas, as pessoas brancas, se abram, assim como a gestão pública, para nos receber”, lembra Rubéns, que recentemente também foi selecionado, por meio de política afirmativa com recorte racial, no Edital de Incentivo às Artes de 2022.
“Além disso, é importante que as pessoas negras, indígenas, queers habitem todas as esferas, todos os campos. Não só a graduação e a pós-graduação, mas concursos para gestores, – que também haja espaço para que esses corpos estejam em posições de poder”, conclui.
Sobre o Projeto Político, Eu!?!
Nos últimos anos, as produções teóricas têm chamado atenção para a intensificação de sentimentos de desconfiança nas instituições democráticas, de rejeição aos partidos políticos e de desinteresse pela política. No entanto, nesse contexto, tem crescido no debate público a demanda pela construção de espaços para o diálogo sobre política, cultivando a compreensão sobre a democracia, suas instituições e valores.
Compreendendo a relevância dessas reflexões para o exercício efetivo da cidadania na vida cotidiana, a Fundação Demócrito Rocha apresenta o projeto “Político, eu?!”, iniciativa que propõe despertar a cidadania de toda a população, além de promover a formação através de um curso de extensão na modalidade de ensino a distância (EaD), com seis módulos contemplando videoaulas, fascículos digitais e radioaulas.
Curso EAD "Educação Política para Cidadania"
Inscrições: De 14 de agosto a 16 de outubro de 2023, neste link
Período do curso: De 11 de setembro a 16 de outubro de 2023
Cadernos especiais
Veiculação nos dias 22, 24, 29 e 31 de agosto no jornal O POVO
Lives
Quando: 22 e 29 de agosto, às 11h, no Facebook e YouTube da Fundação Demócrito Rocha e do O POVO
Programas de TV
Veiculação nos dias 18, 19, 20 e 21 de setembro no Canal FDR