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Gamificação: quando é prejudicial?

Como o excesso ou mau uso da transformação de atividades cotidianas em jogos pode impactar negativamente negócios, condicionar engajamento e moldar relações sociais

A gamificação é a aplicação de elementos e técnicas de jogos em contextos não ligados ao entretenimento para ajudar pessoas a alcançar objetivos específicos. Ela se tornou uma estratégia popular com resultados positivos para aumentar a motivação e o engajamento em diversas áreas, desde a educação até o ambiente corporativo. No entanto, pode ser tênue a linha entre incentivo saudável e atividade com impacto nulo ou, em caso de mau uso, até mesmo prejudicial a pessoas e organizações.

Utilizados principalmente em escolas e corporações, um dos fortes aliados da gamificação são os chamados “serious games” (ou jogos sérios, na tradução), jogos cujo objetivo primeiro não é o entretenimento, mas a educação – o que não significa que não possam ser divertidos.

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Eles contribuem à medida em que facilitam a construção de conhecimentos como um recurso de aprendizagem ativa. Entre outros impactos positivos da gamificação, está a possibilidade de beneficiar pessoas neurodivergentes ou com alguma dificuldade na aprendizagem.

A tendência é que a gamificação atinja cada vez mais espaços, como o varejo. Exemplo disso é que as marcas descobriram que utilizá-la na jornada de compras aumenta o potencial de atração e retenção de clientes. Para o consumidor, atividades rotineiras gamificadas tornam-se menos entediantes – ou menos estressantes, para alguns. Para as empresas, estão associadas ao aumento das vendas.

Mas como isso tudo pode ser prejudicial? A resposta possui raízes complexas e que envolvem a patologização da estrutura social, não podendo a gamificação ser analisada de forma isolada. Lavinia Morais é CEO da Plot Twist Games, empresa de desenvolvimento de jogos e soluções gamificadas localizada no Cariri. Ela, que utiliza aplicativos gamificados para organizar a rotina de atividades físicas e finanças pessoais, diz que o uso da gamificação para o engajamento em atividades rotineiras pode vir a ser um problema a longo prazo.

“Provavelmente, serão pessoas que sempre aguardam uma recompensa, de alguma forma, para toda atividade que exija o mínimo de esforço fora da zona de conforto”, opina. “A incapacidade de não faltar a academia se eu não acumular pontos, não comprar em um site que não tenha cashback, não assistir as aulas de um curso EAD se meu desempenho não está rankeado com o de outras pessoas, e assim por diante”, exemplifica a empresária.

Aqui está o X da questão. A gamificação não é a causa, mas sim a consequência de uma sociedade acelerada que, ante ao bombardeio constante de estímulos, é utilizada como estratégia no rol da disputa pela captura e manutenção da atenção das pessoas.

“Nem o jogo comercial/educacional nem a gamificação tem o objetivo de viciar jogadores, o nosso objetivo principal sempre é ter aderência e imersão dos usuários, para podermos resolver o problema do cliente. Jane McGonigal, no seu livro A Realidade em Jogo, diz que jogar um jogo é um trabalho voluntário. Então, nosso objetivo é sempre criar uma experiência que primeiramente faça o jogador querer jogar e que, enquanto ele estiver no jogo, se sinta totalmente imerso na experiência”, explica Lavinia Morais.

A empresária alerta que é preciso cautela e investir em um trabalho profissional para que a gamificação seja empregada da forma correta no ambiente corporativo. Do contrário, pode ser desenvolvido um jogo com efeito nulo para o real objetivo da empresa, que inclui instruir, gerar competição saudável no ambiente de trabalho, tornar atrativo um produto ou serviço que já existe, entre outros.

“O principal desafio é a gamificação feita sem embasamento. As etapas de design são fundamentais em todo projeto, mas UX (experiência do usuário) é especialmente importante em gamificação. “Projetos baseados na simples execução da ideia do cliente acabam não alcançando resultado nenhum e vai resultar em um grupo de pessoas achando que gameficação é bobagem”, encerra Lavinia.

 

Dependência a dopamina

Beatriz Noberto, 26, é professora de Língua Portuguesa em uma escola da rede privada de ensino em Fortaleza. Ela levou a paixão por jogos para a sala de aula, gamificando alguns conteúdos da disciplina que ministra, incluindo os alunos no próprio desenvolvimento de jogos sérios como mais uma ferramenta pedagógica. Apesar dos efeitos positivos da estratégia, ela demonstra preocupação com a realidade da nova geração de estudantes, mencionando um “dependência” a estímulos multissensoriais para que enfim consigam se engajar com o conteúdo programático obrigatório.

 

Beatriz Noberto é professora de Língua Portuguesa e levou a paixão por jogos para a sala de aula.
Beatriz Noberto é professora de Língua Portuguesa e levou a paixão por jogos para a sala de aula. Crédito: Divulgação/Arquivo Pessoal

“Quando a gente chega na sala de aula, principalmente no ensino médio, que eles já são mais independentes, a gente tem uma disputa diária contra os celulares e os jogos online. A gente percebe, sim, que tem uma certa dependência dos meninos em relação a isso, eles estão um do lado do outro na sala de aula, mas cada um no seu celular jogando com a pessoa que está do seu lado”, relata Beatriz.

“Os meus jogos, que buscam ser jogos de tabuleiro, já para tirar o celular da mão deles, tentam fazer realmente com que eles se interessem pelo conteúdo, dentro de uma linguagem que já dominam. E aí isso funciona bastante, mas infelizmente não tem como eu conseguir a atenção deles através de jogos todas as aulas, porque é impossível você criar uma aula lúdica em todas as ocasiões. E sendo professora de literatura e de redação, às vezes é leitura e escrita, e aí isso é, entre aspas, desinteressante”.

A gamificação aplicada a treinamentos corporativos também possui um cenário similar. “Esse tipo de treinamento realmente tradicional, com slides padrões na projeção, já não funciona muito bem quando a gente está falando principalmente da nova geração”, informa Helton Uchoa, CEO do Grupo UTEL, que atende clientes como o Grupo Normatel, o Grupo Camed, a Unifametro e multinacionais com treinamentos com foco em inovação, a exemplo do treinamento “Design com Foco em Processos”.

 

De fora para dentro

Essa ansiedade e dificuldade de concentração na escola ou no trabalho, observadas pela professora Beatriz
Noberto e pelo empresário Helton Uchoa, são consequência de diversos estímulos externos a esses ambientes, como a influência de videogames e das redes sociais. É uma questão geracional.

Daniel (nome fictício), 27, teve intenso contato com jogos eletrônicos e de tabuleiro desde a infância, o que o ajudou a desenvolver uma visão estratégica e competitiva. Mas, com a chegada dos smartphones, o acesso direto aos jogos facilitou o que veio a se tornar um vício.

“Há alguns anos, (os jogos) se tornaram bem prejudiciais à minha saúde, quando comecei a consumir mais de cinco horas, até mesmo 12 horas por dia, durante o trabalho, dirigindo, quando me via cansado em fazer qualquer atividade simples que não tivesse recompensas ou até mesmo retorno, como lavar uma louça, estender uma roupa ou até dar atenção a algo ou alguém”, lembra.

Hoje, ele diz utilizar os jogos como válvula de escape, mas reconhece que o custo disso foi ter perdido o entusiasmo por relações sociais e familiares no passado. “Me tornei bastante imediatista, perdi mais o gosto de estudar, até porque o retorno é a longo prazo, e tenho dificuldade de concentração até mesmo em leituras”, informa.

A situação começou a mudar quando percebeu que várias pessoas apontavam defeitos em seu comportamento, o levando a refletir sobre suas atitudes. "Assistindo a vídeos no YouTube, pude perceber e entender mais sobre o problema", diz, descobrindo na plataforma de vídeos que existem diversos métodos de desintoxicação digital, como meditação, prática de exercícios físicos, e aprender a apreciar o ócio. Daniel preferiu não ser identificado na matéria.


Como fazer diferente

 

A idealizadora e CEO do SIB Game, Larissa Gurjão, pareceu entender bem isso. O jogo foi desenvolvido para educar empresas e instituições quanto ao desenvolvimento de soluções sustentáveis inovadoras. No SIB Game, cada jogador assume o papel de um personagem que precisa resolver problemas relacionados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) em diferentes cenários globais.

Mas ter o objetivo educacional não basta. É preciso responsabilidade ética na criação de produtos gamificados, afirma Larissa. “É essencial para nós criar uma experiência que seja tanto educativa quanto saudável. Focamos em objetivos educativos e valores sociais, em vez de apenas entretenimento.

Implementamos limites de tempo de jogo para evitar sessões de jogo prolongadas. Incluímos conteúdo que incentiva pausas e reflexões sobre as lições aprendidas, ao invés de apenas continuar jogando sem parar”, informa a empresária.


Estratégias para gamificação com responsabilidade ética
Ser claro sobre como os dados dos usuários são utilizados;
Garantir que o jogo tenha um propósito positivo, como educação ou impacto social, e não apenas entretenimento;
Criar mecanismos que incentivem pausas e reflexões, evitando comportamentos compulsivos.
FONTE: Larissa Gurjão, empresária e CEO do SIB Game

 

A gamificação da vida

"Nosso cérebro, quando estimulado, leva a um aumento da dopamina, que dá a sensação de prazer. E tanto vídeos curtos quanto jogos digitais também têm como resultado provocar esse prazer. Então, a pessoa acaba ficando muito presa a esse meio. E o uso excessivo vai fazer com que a pessoa também tenha uma diminuição da qualidade de sono. A gente já sabe que atrasa a produção de melatonina que nós produzimos, responsável por induzir o sono. Isso faz também com que a gente acabe criando uma má qualidade no nosso dia-a-dia”.

Quem elenca as consequências é a doutora em psicologia Janaína Farias de Melo, também professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e da Uninassau. Ela enfatiza diversas vezes que a gamificação não oferece “riscos” propriamente ditos. Por isso, não devemos vê-la de forma isolada, mas envolta em um contexto de patologia social. E segue a linha dos especialistas que alertam para os perigos de uma sociedade que torna a vida cotidiana cada vez mais uma aventura gamificada.

Especialmente em um contexto de avanço tecnológico, com a utilização de inteligência artificial, a tendência é que a gamificação seja cada vez mais acessível e mais utilizada, e a produção de jogos pode se tornar mais independente, com acesso facilitado a qualquer usuário de ferramentas de IA.

 A professora Janaína Farias de Melo diz que a gamificação não é um problema em si mesma, mas sua utilização errada, assim como qualquer outra ferramenta, pode causar danos.
A professora Janaína Farias de Melo diz que a gamificação não é um problema em si mesma, mas sua utilização errada, assim como qualquer outra ferramenta, pode causar danos. Crédito: Divulgação/Arquivo pessoal.

“A tendência é que a gente utilize cada vez mais metodologias diferenciadas, em especial para pessoas que têm dificuldade de aprendizagem”, observa a professora. Mas Janaína alerta também para um outro potencial para o uso antiético da gamificação: a manipulação comportamental. “Se mal empregada, pode-se utilizar também para ensinar comportamento de risco, como brincadeiras perigosas”, diz a psicóloga, dando como exemplo o ensino de comportamentos violentos ou outro tipo de estratégias que induzem a vícios. “A gamificação em si não tem essa proposta, mas se a gente for observar, ela também pode ser usada de maneira errada”, alerta.

“A primeira necessidade é que quem utiliza (a gamificação) deve ter a noção do que é, como funciona, e relacionar de maneira orientada, dentro da sua proposta de atividade, dentro de empresa, do ambiente de aprendizagem, a utilização da gamificação associada a outras atividades, que não sejam só atividades lúdicas, mas que a gente faça a associação entre outras metodologias com a gamificação”, salienta a professora.

 

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