O fortalecimento indígena por meio da educação

No Ceará, escolas indígenas e cursos superiores voltados para essa população permitem que os povos se apropriem da própria cultura e reivindiquem cada vez mais espaços

00:00 | Dez. 23, 2024

Por: O Povo
Kátia Morais é professora da Unilab e coordenadora pedagógica da Escola Indígena Tapeba Amélia Domingos (foto: DUDA RABELO / especial para O POVO)

A Educação Escolar Indígena é assegurada na Constituição Federal Brasileira de 1988, por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.394/96), que garante às comunidades o direito à educação diferenciada, específica e bilíngue. A modalidade resguarda aos indígenas a recuperação de memórias históricas, reafirmação de suas identidades étnicas e valorização de suas línguas e ciências, sem esquecer das informações e conhecimentos técnicos e científicos que compõem o currículo base da educação convencional.

De acordo com a coordenadora da equipe de educação escolar indígena, parte da Coordenadoria de Educação Escolar Indígena, Quilombola e do Campo (Cociq), da Secretaria da Educação do Ceará (Seduc), Bernardete Pitaguary, a educação escolar indígena atende, hoje, a 14 povos indígenas no Ceará. São 43 escolas e 20 extensões de ensino distribuídas em 18 municípios pelo Estado, que ofertam da educação infantil ao ensino médio.

Antes de responsabilidade da Fundação Nacional dos Povos ndígenas (Funai), a educação escolar indígena passou a ser ofertada pelos estados e municípios a partir da criação da LDB, em 1996. No Ceará, as primeiras experiências da modalidade surgiram no final dos anos 90, organizadas pelos povos nativos ainda de forma improvisada, debaixo de árvores ou em pequenos galpões e casas de taipa. Nos anos 2000, surgem as primeiras escolas estruturadas pelo poder público.

Segundo Bernardete, a criação da modalidade foi necessária devido ao preconceito sofrido pelos indígenas nas instituições convencionais, seja pelo modo de vestir, pensar ou pelas crenças expressadas pelos povos. Além disso, esses alunos enfrentavam longas caminhadas para chegar até uma escola convencional, que não abrangia a parte cultural necessária para essa população.

Hoje, com aulas de português, matemática, história e geografia, mas também de espiritualidade, expressão corporal, arte e cultura, os alunos das escolas indígenas recebem um ensino intercultural. A coordenadora da Escola Indígena Tapeba Amélia Domingos e professora do curso de Licenciatura intercultural da Unilab, Kátia Morais, indígina da etnia Tapeba, exemplifica a metodologia.

“A receita é um gênero textual da língua portuguesa. Eu posso trabalhar essa estrutura levando a receita do mocoró, uma bebida sagrada. Ainda dentro desse conteúdo, posso trabalhar matemática, conversar com meus alunos sobre quantos litros de suco de caju eu preciso para fazer o mocororó. Dentro da ciência, eu posso trabalhar o processo de fermentação do açúcar do caju. Na geografia, eu trabalho o solo do cajueiro, a estação que se tem o caju, o clima favorável. E, na história, qual a importância histórica daquela bebida para aquele povo”, descreve.

Atualmente, essas escolas exercem papel crucial nos territórios indígenas, constituindo espaços de socialização de saberes e fortalecimento de identidades. “Hoje, nós temos indígenas ocupando espaços importantes na definição de políticas públicas. São pessoas que foram fortalecidas dentro dos seus territórios, e as escolas têm muito disso, de fortalecer os indígenas. Então, nós temos lideranças jovens que estão se destacando, alunos que têm alcançado vagas nas universidades públicas. Nossos estudantes podem permanecer nos territórios, mas podem alçar outros voos também”, destaca Bernardete.

Este ano, foi realizado o primeiro concurso para professores das escolas indígenas da rede estadual do Ceará, com 200 vagas. Segundo ela, até agosto de 2024, a maioria dos professores dessas instituições tinham vínculos precários, com contratos de um ano que precisavam ser renovados. Hoje, são 146 professores efetivos e 656 professores indígenas com contrato temporário lotados nas 43 escolas indígenas da rede estadual.

Ensino superior indígena

No Ceará, são ofertadas cinco licenciaturas interculturais reservadas aos povos indígenas e sua cultura, com questões voltadas para identidade, pertencimento, território, pedagogia e metodologias de ensino. São elas: Licenciatura Intercultural Indígena Pitakajá e Licenciatura Intercultural Indígena Kuaba, na Universidade Federal do Ceará (UFC), Licenciatura Intercultural Indígena, na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), Cuiambá Pedagogia Intercultural Indígena Magistério Tremembé, na Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), e Licenciatura Intercultural Específica Tabajara em Ciências Humanas, na Universidade Estadual do Ceará (Uece).

Tesoureiro da Organização dos Professores Indígenas do Ceará (Oprince) e vice-coordenador da Associação dos Professores Indígenas Tapeba (Aproint), Cléber Tapeba é graduado em Licenciatura intercultural indígena pela UFC e mestre em antropologia pela UFC e Unilab. Atuando como um dos coordenadores locais da Licenciatura intercultural indígena na Unilab, ele acredita que os cursos demonstram uma evolução na educação nativa.

“Os cursos de licenciatura permitem que os professores sejam não só educadores, mas também pesquisadores. Pesquisar a própria cultura e se apropriar do conhecimento, evitando que nós nos tornemos apenas objeto de pesquisa. A gente coloca a cara no sol e busca construir o nosso espaço à sombra. O objetivo é fazer com que os outros possam estar sempre buscando o melhor para a sua etnia”, declara.

De acordo com Cleber, em alguns desses cursos o número de inscritos chega a ser três ou quatro vezes maior que o número de vagas. Ele também relembra a Lei federal nº 12.711, de 2012, que reserva determinada porcentagem das vagas das instituições federais de ensino superior e técnico para estudantes de escolas públicas autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção, no mínimo, igual à presença desses grupos na população total da unidade da Federação onde fica a instituição.

“Nós não precisamos só de professores formados, nós precisamos de dentistas, advogados, psicólogos, porque nós precisamos que todos os espaços sejam ocupados por nós mesmos”, destaca.

Educação indígena para quem não é indígena

Apesar das escolas indígenas terem surgido como uma alternativa ao preconceito sofrido pela população nativa no acesso à educação, isso não significa que o problema esteja solucionado. Para Kátia Morais, é necessário um processo de conscientização a partir do Governo para cobrar e fiscalizar que as demais escolas do País e do Estado trabalhem a cultura indígena.

Em 2008, a Lei federal nº 11.645 tornou obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afrobrasileira nas escolas públicas e privadas de ensino fundamental e médio.

“Enquanto indígena, eu acredito que termos a nossa escola com os nossos fundamentos é o melhor. Agora, sobre esse ensino ser aplicado em outras escolas, seria um avanço, até para quebrar a questão de que os povos indígenas são uma população única, ou que não existe indígena no Ceará. Seria bom para que os alunos pudessem ter uma visão maior do indígena brasileiro e cearense, da questão que nós evoluímos também”, destaca.

Outra reivindicação da professora é a criação do cargo de professor indígena. “Toda política pública que vem, vem para o professor da rede estadual, mas não existe uma política pública específica para o professor indígena, porque não existe o professor indígena”, lamenta.